
E A LENDA DE S. FRUTUOSO (Abade)
J. A. PIRES DE LIMA
(Sessão científica de 3 de Junho de 1921)
Professor da faculdade de Medicina do Porto
Apresentação de Manuel Martins
Em princípios de Novembro de 1920, os jornais noticiosos
referiram-se largamente a um curandeiro que foi preso no concelho
de Vila Nova de Gaia por andar tratando indivíduos mordidos por
cães raivosos.
Chamava-se Manuel António Martins, tinha 54 anos, e morava na
freguesia de Aboim da Nóbrega, concelho de Vila Verde. Possuía um
«dente-santo» que teria mais de oitocentos anos, pertencera a S.
Frutuoso e gozava do privilégio de prevenir a raiva, desde que
fossem benzidas com ele as pessoas mordidas de cão
danado.
Ao ser preso, apreenderam-lhe o dente-santo, recomendando
insistentemente o Martins que não lho perdessem; e acrescentou que,
ainda que tal sucedesse, o dente iria ter milagrosamente a sua
casa.
Dos autos do corpo de delito por burla, em que foi arguido Manuel
António Martins, consta o seguinte: César Ferreira, residente na
Praia da Granja, suspeitando que uma sua vaca fora mordida por um
gato raivoso, e sabendo que o Martins ou “Dente-santo”, viera a
Espinho benzer umas pessoas, mandou-lhe pedir para ir também benzer
a vaca, o que ele fez, declarando que todas as pessoas e animais
mordidos de cão danado ficavam radicalmente curados, desde que
fossem benzidos com o dente-santo e se lhes aplicasse a reza de S.
Frutuoso.
Ao auto de perguntas respondeu Manuel António Martins ser casado,
lavrador, filho de João Batista Martins; que nunca estivera preso
nem respondera em processo e que, há alguns anos a esta parte,
procurava por meio de rezas fazer o tratamento da raiva a pessoas
e animais. Houvera dias que o chamaram à Granja, onde benzera
grande número de pessoas. Garantiu o Martins que o tratamento que
aplicava, isto é, as rezas e a benzedura com o dente de S.
Frutuoso, torna desnecessário o tratamento médico.
O dente-santo pertenceu já a seu pai, avô e outros antepassados,
que como ele exerciam a mesma profissão. Afirmou Martins:
“Benzi diferentes pessoas mordidas por animais
raivosos e nenhuma delas se danou. Aquele dente já tem oitocentos
anos e faz curas milagrosas. Vou a qualquer parte onde me chamem
para benzer os mordidos de cão danado, desde que se
responsabilizassem pelas despesas.”
O agente do Ministério Público, Sr. Dr. A. de Alpoim, atendendo a
que o Martins não tratava de angariar clientes, que, pelo
contrário, acorriam pressurosos suplicando-lhe que os benzesse; e
que, além disso, ele é um crente sincero nas virtudes do
dente-santo, promoveu que se arquivasse o processo e que o dente,
para que em ninguém mordesse, fosse enviado ao director da
faculdade de Medicina, para que ficasse ali arrecadado, como prova
do “que foi, é, e será por largo tempo, a crendice
popular”.
Em conformidade com essa promoção, o juiz remeteu o dente-santo ao
Sr. Director da Faculdade de Medicina, que o confiou à minha
guarda.
Apresentação da curiosa relíquia à
Sociedade

O dente-santo está guardado numa caixa de prata, composta de dois
cilindros irregulares, ocos. A parte superior, ou tampa, é de forma
cilíndrica, irregular, está bastante amassada e apresenta, junto do
bordo livre, uma extensa brecha disposta verticalmente. Mede 55
milímetros de altura e 34 de diâmetro máximo. Ainda junto do bordo
livre tem fixa uma argola de prata,
fro
nteira a outra que se encontra junto do bordo que está tapado. Por
essas argolas passa um cordão de lã preta a que logo me vou
referir.
Do outro lado estariam dispostas simetricamente outras argolas: a
correspondente ao bordo livre desapareceu, havendo no seu lugar um
buraco que atravessa a caixa. A argola que está na mesma linha,
junto do outro bordo, está rota, gasta pelo uso. Entre as duas
argolas que ficam
ju
nto do bordo tapado vê-se, dum lado e do outro, um sinal, cuja
significação não pude determinar.
A parte inferior é também um cilindro oco, irregular; é a que
recolhe o dente-santo, com a fita que o sustenta, e tem um bordo
livre muito irregular e com diversas falhas. Junto desse bordo
encontram-se dois buracos, dispostos um defronte do outro. A um
deles está amarrada uma fita, da qual pende o dente de S.
Frutuoso.
Esta parte é mais estreita e mais longa que a primeira, na qual
encaixa; mede 63 milímetros de altura e 33 de diâmetro máximo.
Junto da base desta peça há uma faixa de um centímetro de largura,
limitada por dois bordos salientes. Nessa faixa vêem-se fixas
também duas argolas de prata, por uma das quais passa uma grossa
cadeia do mesmo metal.
A fita a que me referi é de algodão vermelho escuro, mede 62
centímetros de comprido e 22 milímetros de largura, e prende-se a
uma argola que está unida a uma espécie de berloque cilindro-cónico
de prata, onde está encastoado o dente-santo.
Aquela peça metálica tem 3 centímetros de comprido e 13 milímetros
de diâmetro máximo. O dente-santo é um grande molar humano, muito
amarelecido pelo tempo; irregular, multicuspídeo, só uma parte da
coroa está fora do engaste. Mede 11 milímetros de largura e 7 de
espessura.
O cordão de lã tem 47 centímetros de comprido, passa pelas argolas
a que me referi e está amarrado pelas suas duas extremidades a uma
grossa corrente de prata de 77,5 centímetros de comprimento. O
cordão de lã e a corrente serviam para lançar ao pescoço do
benzedor, quando ele fazia aplicação do dente de S. Frutuoso. No
fundo da caixa que o encerra, encontra-se um bocado de estopa para
amortecer os atritos à preciosa relíquia. A estopa está
irregularmente corada de vermelho, certamente pelo contacto da
fita, que por vezes seria recolhida húmida.
A caixa de prata, com todos os seus anexos, pesa 115 gramas.
Consultado o ilustrado ourives Sr. Rosas, sobre a antiguidade da
caixa, manifestou a opinião que ela não teria menos de duzentos
anos, sendo a corrente muito mais moderna.
Assim acabou, tão prosaicamente, recolhido a um Museu, um objecto
que tantos milhares de pessoas olhavam como sagrado!
Tradição popular e literatura do dente-santo de Aboim da
Nóbrega
Esta freguesia seria outrora a sede de muitos solares de fidalgos,
e daí lhe provirá o nome. Julga o povo destes sítios que S.
Frutuoso era dali e ainda hoje o venera em duas capelas (Sande e
Senhor da Paz do Mundo). Como quer que seja, dizem "que, há vários
séculos, existe em Aboim o dente de S. Frutuoso, na posse da
família de “Os do feitor” ou "Dentes-santos”. Diz a lenda que o
próprio S. Frutuoso o ofereceu a um fidalgo, o qual, tendo
dissipado toda a sua fortuna e morrendo solteiro, o legou, à hora
da morte, a um criado; declarou-lhe que o tinha recebido do próprio
S. Frutuoso, que lhe dissera o seguinte: “Quem possuir
este dente não será rico, mas será sempre remediado, e nunca
passará necessidades. Só poderá ser possuído por um varão.
Indivíduo que fosse mordido por cão danado, sendo benzido com o
dente-santo, não tinha perigo; não há exemplo de que ninguém tenha
morrido danado na freguesia de Aboim.”
Todo o povo daquelas redondezas acredita piamente na eficácia do
dente de S. Frutuoso, e “Os do feitor”, conquanto criaturas
absolutamente incultas, eram muito respeitados e todos recorriam a
eles em caso de mordedura por cão raivoso.
O ensalmo usado pelo «Dente-santo» era o seguinte:
"Em nome do Padre, do Filho, do Espírito
Santo E de S. Frutuoso
Eu te benzo
E, tocado por mim, nunca serás raivoso.»
«O do feitor», para benzer os mordidos, ou o pão que eles deviam
comer, deitava a cadeia de prata ao pescoço e segurava com a mão
direita o dente-santo, fazendo com ele cruzes, enquanto
pronunciava as palavras do ensalmo (acima descrito).
Parece que o dente de S. Frutuoso já há séculos estava de posse da
família d’ «Os do feitor». Obedecendo à tradição, o dente não devia
passar da linha masculina. Uma vez, talvez no tempo do bisavô de
«João do feitor», João Manuel Martins, pai de Manuel António
Martins, o detentor do “dente-santo” teve apenas uma filha
legítima, que, por ser «varoa», não podia herdar a
relíquia.
Diz-se que o pobre homem, já idoso, se lamentava por não poder
deixá-lo a um membro da sua estirpe, quando várias mulheres do
sítio, comovidas com os seus queixumes, se lhe ofereceram para que
ele, num derradeiro esforço, procurasse haver um autêntico herdeiro
para o “dente-santo”. Efectivamente, diz a tradição que uma das
moças teve a glória de gerar um filho varão a quem coube a honra de
perpetuar a dinastia.
Esta família, conforme a promessa de S. frutuoso, nunca foi rica,
mas também nunca teve necessidades. O último possuidor do dente é
um pequeno lavrador e ganhava bastante dinheiro com a sua arte de
benzedor. Antigamente o ”Dente-santo” recebia cinco ovos por cada
mordido que benzesse; depois passou a levar um pataco, depois seis
vinténs e ultimamente exigia dois tostões, além das despesas de
viagem. Ia onde o chamavam e tinha larga fama nas províncias do
Minho, Trás-os-Montes e Douro, e ainda na Galiza, onde muitas vezes
o reclamavam.
O “Dente-santo”, como disse, também benzia pão, que depois dava a
comer aos homens e animais mordidos, durante alguns dias. Em geral
os pães que ele benzia eram as chamadas podas, que são compostas de
quatro porções separadas em cruz. Assegura-se que esse pão assim
benzido jamais ganhava bolor, ainda que se conservasse durante dois
ou três meses. Não há dúvida que a tradição do “dente-santo” de
Aboim é antiga, estendendo-se para muito longe. Conta meu Pai que,
há talvez mais de sessenta anos, se lembra de que, estando ele em
Carreço (Viana do Castelo), chamaram ali o "Dente-santo” de Aboim,
para benzer uns indivíduos mordidos por cão raivoso, e que ele
benzia também moletes que os mordidos deviam comer.
«Os do feitor» são porventura os últimos representantes em Portugal
dos antigos salutatores, saludadores, saüdadores, ou
benzedores.
O povo considerava outrora duas castas de pessoas dotadas de
poderes sobrenaturais: urna, a dos feiticeiros de ambos os sexos,
recebia do diabo a arte de adivinhar; ainda hoje é, entre nós,
muito viva a crença nas bruxas e feitiços. A outra era de Deus que
recebia extraordinários poderes: refiro-me aos saludadores ou
benzedores, que hoje quase desapareceram da tradição portuguesa mas
que, pelo menos há poucos anos, ainda estavam muito em voga na
Espanha.
Adolfo Coelho produziu uma longa e erudita dissertação sobre os
saludadores e outras pessoas dotadas de poderes sobrenaturais e
Brás Luís de Abreu apresenta-nos as regras para distinguir um
autêntico benzedor dum mistificador qualquer que deseje usurpar
aquela grave qualidade. Se o benzedor, quando intenta curar a
hidrofobia, aplica um bocado de pão que tenha sido por ele primeiro
mastigado, trata-se, segundo o «Olho-de-vidro» de um
“supersticioso, & embusteiro; porque a graça de
curar não necessita de ajudar-se de semelhantes remédios, e
circunstancias. (…) Há quem diga que os que nascem em sexta-feira
santa trazem consigo aquele dom. São embusteiros (impostores),
maliciosos, ou ímpios, prejuros & suspeitos de pacto"_
segundo Brás Luís. Enquanto que os feiticeiros eram duramente
castigados pelas leis portuguesas, os benzedores, desde que fossem
devidamente autorizados, podiam exercer Iivremente a sua
milagrosa arte.
Em Espanha preveniam os efeitos da hidrofobia dando um saludador a
comer aos mordidos de cão danado pão sem sal. O saludador prevê por
meio da cristalomância se uma mordedura de cão danado estaria ou
não destinada a provocar a raiva. Na estação mais perigosa, o
saludador andava de aldeia em aldeia benzendo os gados e
saudando-os em nome de Deus. Era tão forte em Espanha a crença nos
saludadores, que havia aldeias onde eles estavam avençados como os
médicos. O saludador nasceu em sexta-feira santa às três da tarde
em ponto, hora precisa a que morreu Jesus; tem uma cruz no céu da
boca e chorou três vezes no ventre de sua mãe, que do fenómeno
guardou segredo. Vive dos proventos que lhe dá o exercício da sua
profissão de benzedor de mordidos de cão raivoso.
Lenda de S. Frutuoso
Atravessemos agora o Marão e vejamos o que resta em Constantim da
Cabeça de S. frutuoso. Vejamos também o que pude averiguar, quer na
tradição trasmontana, quer na literatura, sobre a vida e os
milagres de S. Frutuoso, e confrontemos a Ienda de Trás-os-Montes
com a do Minho.
S. Frutuoso seria natural da freguesia de Constantim, perto de Vila
Real, no século XII, filho único de um rico e honrado lavrador.
Desde criança se fez notar pela sua piedade. Sua mãe mandava-o
enxotar os pássaros das sementeiras, e as avezitas tinham-lhe
tanto respeito que, à sua voz, recolhiam a uma pastoril choupana,
da qual não saíam até que o santo menino lhes desse a liberdade.
Logo veremos como ainda perdura na tradição tão ingénua
lenda.
Foi abade de Constantim, fazendo uma peregrinação a Roma e a
Jerusalém. Pouco depois de voltar, morria, enterrando-se na igreja
em que foi pároco. Mais tarde o seu corpo foi trasladado para um
túmulo condigno “deixando-se fora o craneo para
consolação dos fieis, q pelo circulo do ano, acorrem ao local com
titulo de Cabeça Sancta, a qual tem particular prerogatiua para
sarar mordidos de cães danados, & preservar de corrupção o pão
q nela se toca. Finalmente levada esta sagrada relíquia
surriticiamente para Galiza no ano 1540 (Que sempre teve nesta
nação Portuguesa, graves ladrões dos seus Sanctos!) depois de estar
lã algú tempo, quando senão percatarão, appareceu com patente
milagre no altar de sua Igreja, em q de presente se guarda num
decente nicho, aberto no cõcauo da parede, com grades douradas
".
Como se vê, já no século XVll, George Cardoso dizia que a Cabeça de
S. Frutuoso preservava de corrupção o pão que nela tocasse. O mesmo
se diz hoje em Vila Verde, como vimos, do pão que fosse benzido com
o “dente-santo” de Aboim.
Á cabeça de S. Frutuoso Abade se atribui o facto de ter sido
roubada para a Galiza. O mesmo percalço teria tido o corpo de S.
Frutuoso Arcebispo, que de Braga seria furtado por um bispo da
Galiza. Devemos confrontar também a parte da lenda que fala do
reaparecimento milagroso da Santa-Cabeça em Constantim, com as
recomendações de Manuel António Martins, a propósito do seu
“dente-santo”: - que não lhe perdessem o dente; mas que, ainda que
tal sucedesse, ele iria ter a sua casa...
Dos princípios do século XVIII encontrei outra notícia acerca da
Santa Cabeça. Refere o P. Carvalho que na igreja paroquial de
Constantim está sepultado o corpo de S. Frutuoso, que uns dizem ser
natural daquela freguesia, afirmando outros que se trata dos restos
de S. Frutuoso, arcebispo de Braga. Segundo o autor da Corografia
“suas relíquias são visitadas de muitos devotos, que
experimentam o patrocínio do Santo em suas suplicas, & se lhe
dá a beijar a sua cabeça, que se guarda com grande decência em um
Sacrário, e vulgarmente se chama a Cabeça santa de Constantim,
& com o contacto desta relíquia experimentam muitos enfermos
remédio em seus achaques, particularmente as pessoas mordidas de
animais danados, sendo eficaz antídoto contra o venenoso de tão
perniciosa enfermidade “.
Boaventura Maciel Aranha fornece-nos novos dados sobre a vida do
nosso santo, a quem chama S. Frutuoso Gonsalves, Cónego Regrante de
Santo Agostinho e Abade de Constantim. Afirma que ele fora prior do
Mosteiro de S. Martinho de Cáramos, que era distante de Braga cinco
léguas. D. Afonso Henriques doara àquele mosteiro a igreja de Santa
Maria de Constantim em 1154 e S. Frutuoso foi então nomeado abade
da referida igreja. Fizera construir ali uma capela dedicada a S.
Frutuoso, Arcebispo e recomendara que o enterrassem ao pé do altar
daquele santo. Efectivamente, assim o fizeram, mandando abrir na
sua sepultura o seguinte epitáfio: «Aqui jaz sepultado
em terra, o célebre Abade Frutuoso, cuja alma esteja no Céu, pois
amou, e guardou tão bem as suas ovelhas. Faleceu cheio de
merecimentos aos 4. dos Idos de Novembro da era de 1200., que he
era de Christo 10. Novembro de 1162». Naquela sepultura fez
portentosos milagres até 1216; então o arcebispo de Braga fê-lo
trasladar para uma urna de pedra, mas deixou fora o crânio, que
mandou encastoar em prata, para assim ser tocado dos devotos, que
concorrem a invocá-lo com o título de “Cabeça-Santa".
D. Frei Bartolomeu dos Mártires venerou aquela santa relíquia, bem
como os seus sucessores, até que «grandes ainda que
piedosos Ladrões a levaram para a Galiza em 1540».
Boaventura Aranha repete a narração do milagre do reaparecimento
da Santa Cabeça no altar da sua igreja de Constantim e fala dos
prodígios que ela obra, isto é: preserva da corrupção o pão que
nela toca e sara as gentes e todos os irracionais mordidos de cães
danados que chegam a vê-la. O terceiro prodígio consiste no
seguinte: os lavradores daquela região vão tocar na Santa Cabeça
com espigas de milho, que depois utilizam para semear. Milho
nascido daquela semente nunca é devastado pelos
pássaros.
Em 1321, ainda segundo Aranha, D. Dinis fizera várias doações à
Santa Cabeça, de quem seria muito devoto, pois que, tocando-a,
ficara são duma dor de cabeça que havia tempos o
molestava.
Dos séculos XIX e XX conheço na literatura apenas duas breves e
inexactas notícias sobre a Santa Cabeça. Pinho Leal referindo-se a
Constantim de Panoyas diz: «Aqui nasceu S. Frutuoso,
advogado contra as mordeduras dos cães danados. Na igreja matriz da
freguesia, que é muito antiga, se conserva ainda a cabeça deste
santo que os romanos degolaram».
O meu prezado colega Dr. António Feliciano enviou-me alguns dados
muito curiosos, que lhe foram fornecidos por um ilustre sacerdote.
Corroboram em grande parte as informações colhidas por mim na
literatura e na tradição popular e acrescentam o seguinte: 5.
Frutuoso nasceria em Torgueda, perto de Vila Real. Foi cónego
regrante de Santo Agostinho no mosteiro de Cáramos e depois prior
desse mosteiro, para onde foi nomeado em 1124, renunciando à
prelasia em 1130, para fazer uma peregrinação à Terra Santa. De
volta a Portugal foi apresentado para a freguesia de Santa Maria de
Constantim, a qual pastoreou durante oito anos, morrendo então. O
seu sucessor, o cónego regrante D. Afonso mandou erigir-Ihe um
mausoléu, onde se lia o seguinte epitáfio: «Hic
jacet
interrisFructuosusAbbascelebris
, custos e
amicusgregis
;
ejus
anima
sitincoelis
.
Obiitplenusmeritis
IIII
IdusNovembris
, era bis
centesimamilesima
».
Durante séculos esteve seu corpo sepultado na igreja de Constantim,
donde foi trasladado para Braga, segundo alguns, excepto o crânio
que ficou na dita igreja.
Vejamos agora a que estão actualmente reduzidas as suas relíquias e
estudemos como a vida daquele bem-aventurado passou para a tradição
popular trasmontana, conservando-se aí quase imutável através dos
séculos.
Existia outrora no adro da igreja de Constantim um túmulo de pedra
inteira, com a cavidade própria para receber um corpo humano. Esse
túmulo, com a respectiva cobertura, foi em tempo aproveitado para
umas obras da igreja. Tratar-se-ia da urna de pedra de que fala
Boaventura Aranha?
Defronte do altar de S. Frutuoso existe uma pedra com a seguinte
inscrição: «Sepultura em que esteve o corpo de S. Frutuoso Abade e
se trasladou para o altar em 27 de Janeiro de 1764. No altar ainda
existe o nicho com a Santa Cabeça, que está encastoada em metal
vulgar, porque a prata que a rodeava foi roubada há cerca de 14
anos. O crânio está reduzido à calote, porque parece ter sido
cortado aos poucos pelos crentes. Não tem, portanto, nem dentes nem
maxilas. No mesmo altar há uma escultura com 0,80 metros de altura,
que representa S. Frutuoso; essa imagem servia na festividade em
honra daquele santo, que aliás há muito se não celebra. O povo tem
ainda hoje muita devoção por S. Frutuoso, advogado dos raivosos e
das dores violentas de cabeça. Por ocasião das sementeiras vão
pessoas, ás vezes de longe, tocar as sementes no crânio, confiadas
em que os pássaros vão fazer estragos nas searas com elas semeadas.
Há no povo a crença de que os indivíduos baptizados na igreja de
Constantim não são mordidos por cães raivosos e, diz o meu
informador, «a verdade é que ainda não se deu o
primeiro exemplo».
No referido altar de S. Frutuoso há um caixão argolado, com três
arcas fortes de ferro, mas foi em tempo violado. Nele existe a
seguinte inscrição: «Por decreto do Ser.mo
Snr. D. Gaspar Arc.po Primaz e Snr. de Braga aos 20 de
Janeiro de 1764 se trasladou os ossos de S. Frutuoso abade de
Constantim e Missionário Apost.o». O que é verdade é
que hoje não existem lá tais ossos; apenas se vê no referido caixão
uma pouca de terra dentro de duas sacas que estão a
apodrecer.
Próximo da igreja há uma fonte denominada de S. Frutuoso; ali vão
os romeiros lavar as suas feridas, crentes de que ficam assim
radicalmente livres da hidrofobia. Há exemplo de ter morrido
danada uma criança de 13 anos, que viera de longe cumprir uma
promessa. Também se tinha tratado no Porto com as injecções
anti-rábicas de Pasteur. Diz o povo que, para casos destes, não
deve recorrer-se à medicina, mas só aos banhos na fonte de S.
Frutuoso; além disso, o mordido não deve trabalhar, mas sim viver
de esmolas durante o tratamento. Outras coincidências têm
afervorado a crença dos trasmontanos, tais como o seguinte caso,
que afirmam ser verdadeiro: Um dia apareceu em Cabanas (Vila Pouca
de Aguiar) uma loba danada, que mordeu grande número de pessoas,
entre as quais um padre, que se dirigiu logo ao Instituto Pasteur
de Paris. Os outros mordidos, como não tinham recursos, vieram
tratar-se com a Santa-Cabeça. Todos eles escaparam e, pelo
contrário, o padre, ao chegar de Paris, morria hidrófobo! A
superstição mais se arreigou no espírito popular: várias pessoas de
fora de Constantim mandam lá os filhos a baptizar e os que lá são
baptizados não têm medo nenhum dos cães danados.
Existe ainda na tradição a lenda do roubo da Santa-Cabeça a que já
fez referência. Quando se deu pela falta da relíquia, os
habitantes de Constantim tiveram uma profunda comoção. Passados
tempos, porém, ouvia-se o sino da igreja repicar sem que ninguém
lhe bulisse e, nessa ocasião, reapareceu milagrosamente a Santa
Cabeça na sua igreja. Por todas as freguesias por onde ela
passou, desde a Galiza, ouvia-se igualmente um repique misterioso
de sinos, sem que ninguém lhes tocasse.
A lenda de S. Frutuoso e da Santa-Cabeça estende-se a vários pontos
de Portugal.
J. A. PIRES DE LIMA