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Terrain:
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Size:  (micro)
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E então estou ali na minha casa. Não a minha casa actual. A casa em que nasci e cresci e deixei há tantos anos. Fazia tempo que eu, ao visitar minha velha casa, não parava para refletir sobre ela e as pessoas e as coisas que a marcaram ao correr dos longos dias. E faço isso ali naquele instante, dentro dela. A casa foi reformada, e isso me incomoda. É mais ou menos como encontrar alguém querido que fez uma plástica no rosto: é o mesmo e ao mesmo tempo não é. A imagem que guardo dela é a antiga, não importa que a reforma tenha sido feita há mais de dez anos. A casa simples, modesta, acolhedora. Portão e portas sempre abertas, à espera de amigos. Três pequenos quartos. Apenas um banheiro. Éramos sete, papa, mamã e os cinco filhos, e em certos momentos o congestionamento na zona do banheiro era inevitável. A reforma trouxe mais um banheiro, mas a casa que eu realmente amei sobre todas as outras casas tinha apenas um, e era movimentado.
E então me ocorre um pensamento tolo. Talvez o maior presente que eu poderia ganhar era aquela casa reconstruída. Mas onde estariam as pessoas que a fizeram ser mágica e única como foi? Meu pai naquele sofá, depois do almoço feito por Dona Isabel, em meio ao alarido de todos nós. Meu pai se deitava de costa e tirava uma sesta de 15 minutos. Meu pai na cama, nos domingos à tarde, o abajur ligado, um romance policial na mão, ouvindo o jogo do Corinthians. Meu pai era o sol daquela casa, o sol e a lua e todas as estrelas.
Meu irmão mais velho foi meu companheiro de quarto. Juntos suportamos o barulho de Dona Isabel ao abrir as gavetas emperradas do guarda-roupa tosco e acomodar nossas roupas mais ou menos às 6 da manhã. Dona Isabel chegava de madrugada. Também ela não poderia ser reconstruída. Dona Isabel tinha um sotaque nordestino forte e jamais conseguiu pronunciar direito o nome de meu pai. Uma vez. Uma vez escrevi um conto erótico, e dei à empregada da trama o nome de Dona Isabel. Era este o título do conto, acho. Estranha homenagem.
Perguntávamos um ao outro, meu irmão e eu, se já tínhamos dormido. Éramos garotos e a noite nos trazia de vez em quando medo e sobressalto. Lembro a última noite em que dormimos no mesmo quarto. No dia seguinte ele se casaria. Eu deveria estar alegre, a noiva era e é uma grande mulher, mas o sentimento que me assaltou mesmo quando o vi deitado na cama que usaria pela última vez foi melancolia.
Ali estou hoje, adulto, na minha velha casa. Dois objetos que sobreviveram aos dias me são particularmente caros: um quadro em preto-e-branco de Jesus. Umas poucas palavras ao lado da imagem: tinha 33 anos, jamais escreveu um livro, morreu na cruz. E uma coleção de Machado de Assis, em capa dura verde, com anotações de meu pai jovem. Mas o velho abacateiro, em cuja sombra enorme, no quintal, eu brincava de futebol e jogava bolinha de gude, o velho abacateiro foi abatido. E o chão de terra do quintal foi transformado em cerâmica. Olhar para o quintal e não ver o abacateiro me dá a idéia da imensa fugacidade, precariedade de tudo. Um mestre zen, ao notar a rapidez com que a vareta de um incenso se consumia, alcançou a iluminação. Num poeta, a consciência de que tudo se desfaz velozmente produz versos líricos, pungentes.
Num sábio, é o melhor remédio contra a vaidade, a presunção. Em mim, escritor barato que sou, nem iluminação, nem lirismo, nem sabedoria. Apenas perplexidade vã, tola, e uma pergunta ainda mais vã e mais tola sobre o sentido de tudo isso.
Additional Hints
(Decrypt)
Ab oenapb :)