'Pergunta-me o director do “Diário do Alentejo” se sou moço para fazer uma crónica sobre o “Bairro Alemão”, uma crónica de memórias pessoais e históricas. Não sei se tenho engenho para verter numa crónica as lembranças de um bairro da minha cidade que, dizem, é um exemplo de como deveriam ser todos os bairros das nossas urbes. Aqui fica o que consegui relembrar. O Bairro Alemão traz-me à memória episódios e vivências diversas, espaçadas em tempos distintos e com intensidades desiguais. Num primeiro tempo – estou a falar de 1969, princípios de 70, o Bairro Alemão era um sítio onde viviam cidadãos estrangeiros cujas casas tinham aquecimento em todas as assoalhadas, onde não faltavam tapetes largos e, nos quartos de dormir, camas gigantescas desprovidas de lençóis mas abastecidas com umas coisas cheias de penas, de pato diziam eles. Do que eu mais gostava, nesse meu tempo com pouco mais de 10 anos de idade, era poder deitar-me nas alcatifas, junto a armários onde tudo cabia, e desfrutar das aparelhagens de som que faziam ecoar a estereofonia que me entrava pela cabeça através de auscultadores, uma coisa criada para, também, não incomodar os vizinhos. Foi nestas andanças que dei os meus primeiros passos na língua alemã, ora arranhando o que ouvia, ora tentando ler as páginas das revistas que, também elas, vinham da Alemanha, recheadas de notícias e ilustradas com mamas e rabos, que me eram oferecidas, as revistas poisclaro, para aprofundar o conhecimento da língua. É em 1973, no Bairro Alemão, que apanho boleia para ir, pela primeira vez, visitar a Alemanha. Lá chegado, percebi que o bairro em Beja tinha sido “copiado” de tantos outros existentes na Alemanha e que a estereofonia, afinal, não habitava em todos os lares alemães. Os seios e corpos despidos, esses sim, estavam em todas as bancas de revistas. Assim como o cheiro dos produtos para as máquinas de lavar roupa e a possibilidadede assistir, ao vivo, ao “Dark Side” dos Pink Floyd. Por razões irrelevantes para esta crónica, o Bairro Alemão passa a década de 1970 quase desocupado de alemães. A política externa alemã e o 25 de Abril ditam a redução de habitantes no bairro. Em 1980 a comunidade alemã regressa a Beja e o bairro toma uma nova vida. A Casa Alemã é o centro de tudo o que é novo, a discoteca é o ponto de atracção nocturna, a cerveja começa a fazer parte dos hábitos bejenses e a típica gastronomia alemã entra nos lares da nossa cidade. As festas e hábitos alemães são, nessa década, uma marca do Bairro Alemão: o Carnaval, com cinco dias de folia, a tentar reviver as festividades carnavalescas de Colónia; o baile de Maio, com mesas recheadas e orquestras germânicas; a Oktoberfest faz da cerveja uma festa e do pernil de porco uma estranha iguaria; o Bazar de Natal, com multidões a contribuir para associações carenciadas, numa forma de estar a que, ainda hoje, não nos habituámos, passou a fazer parte do calendário bejense. A Cultura também regressou ao bairro, com iniciativas nas diversas áreas. Foi também no Bairro Alemão que Beja viu, em directo, a cerimónia da reunificação da Alemanha, decorrente da queda do Muro e do fim da Alemanha comunista. O Bairro Alemão deixou de existir em 1994. Hoje é o Bairro da Força Aérea Portuguesa. A história do Bairro Alemão está por fazer, assim como por fazer está a história da presença alemã em Beja'
Texto de João Espinho (Diário do Alentejo, 12JUN12)
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