ALVES DOS
REIS
A verdadeira história do maior burlão português.
A FRAUDE DAS NOTAS DE
500$00
Em escritórios cuja austeridade reflecte a importância das
transacções a que se dedica, na Great Winchester Street, 26, a
venerável firma londrina Waterlow & Sons Lda, mantém o
seu vultoso e muitas vezes delicado ramo de negócio – a impressão
de papel moeda para governos espalhados pelo mundo.
No dia 4 de Dezembro de 1924, Karel Marang Van Ysselveere,
conceituado negociante e banqueiro de Haia, apresentou neste
estabelecimento credenciais como emissário especial do Governo
Português. Foi recebido pessoalmente por Sir William Waterlow,
presidente do conselho de administração da firma, a quem o holandês
de gestos delicados e aspecto distinto explicou que o Banco de
Portugal necessitava urgentemente de 200 000 notas de 500 escudos.
Por motivos políticos, a emissão teria de ser realizada em segredo,
pelo que o presidente do banco incumbira Marang das negociações, em
lugar de recorrer às vias diplomáticas habituais.
Sir William mostrou-se atenciosamente disposto a colaborar,
exigindo embora a autorização do governador do banco e o contrato
habitual. O holandês considerou tal requisito absolutamente
natural; os papéis seriam remetidos de Lisboa sem demora.
Assim começou uma das mais fantásticas fraudes registadas na
história das finanças internacionais.
No decorrer das semanas seguintes a firma Waterlow & Sons
recebeu uma série de documentos onde haviam sido inscritas as
palavras “Rigorosamente Confidencial”.
Uma carta com o selo e a assinatura do Governador do Banco de
Portugal, Camacho Rodrigues, autorizava a impressão das notas.
Explicava a carta – expressamente endereçada a Sir William – que
Marang tinha poderes para receber o dinheiro e levá-lo para Lisboa,
onde passaria à mãos de um sindicato comissionado pelo Governo
Português, para ser utilizado na recuperação das finanças da então
colónia de Angola.
Como o dinheiro seria exclusivamente investido em Angola, poderia
ser impresso com as mesmas chapas e os números de série usados por
Waterlow na última emissão de notas de 500 escudos que circulavam
em Portugal. O Banco de Portugal imprimiria sobre as notas a
palavra «Angola», a fim de evitar a confusão em entre as
duas emissões.
Se no espírito de Sir William existissem quaisquer suspeitas de
irregularidade , estas desvanecer-se-iam com a chegada de contratos
assinados pelo alto-comissário de Angola e por alguns dos mais
destacados banqueiros de Portugal. As máquinas de Waterlow
fabricariam notas de 500 escudos no valor de 100 milhões de
escudos, devidamente entregues em várias remessas a Marang, o qual
as levou para Lisboa livre de fiscalização aduaneira, graças às
imunidades diplomáticas de que gozava, pois era cônsul honorário da
Pérsia em Haia.
Sir William ignorava que todos os contratos e cartas, agora
cuidadosamente guardados no seu cofre eram falsificações, que o
Banco de Portugal não mandara imprimir qualquer indicação sobre as
notas, as quais nunca circulariam em Angola. Só iria descobri-lo um
ano mais tarde e quando já houvesse imprimido mais de 20 milhões de
escudos.
No dia 5 de Dezembro de 1925, a Polícia de Investigação Criminal
Portuguesa efectuou uma busca na filial do Porto do Banco de Angola
e Metrópole, instituição recente e extremamente próspera, em
virtude de denúncias, segundo as quais o estabelecimento realizava
transacções ilegais com moedas estrangeiras. Mas quando o inspector
encarregado das investigações e os seus ajudantes chegaram à
casa-forte do banco, encontraram algo muito mais espantoso do que
dólares e libras ilegalmente adquiridos. Os cofres estavam
abarrotados de notas de 500 escudo, amarradas em maços do Banco de
Portugal, mas não consecutivamente, pelo número de série, de acordo
com o costume do Banco.
Apesar das declarações do principal perito do Banco de Portugal
imediatamente chamado, segundo o qual as notas eram
indubitavelmente autênticas, o inspector mandou o dinheiro
apreendido para a filial do Banco de Portugal no Porto, com ordens
para a conferência dos números com os de todas as notas de 500
escudos em caixa. Ao anoitecer, haviam sido encontrados quatro
pares de notas com números idênticos.
A 7 de Dezembro todo o país estava em pânico. À medida que afluíam
milhares de notas de 500 escudos para resgate aos guichés do Banco
de Portugal, aumentava o número de notas idênticas. Logo que se
tornou evidente a extensão da fraude, a cotação internacional do
escudo, moeda normalmente sólida, caiu rapidamente. O conselho de
administração do Banco de Portugal em Lisboa manteve-se reunido em
sessão extraordinária quase permanente.
Os factos apurados nas investigações revelaram-se cada vez mais
fantásticos. Não só alguém iludira a firma de Waterlow, fazendo-a
imprimir para si 300 milhões de escudos, como também fundara com
esse dinheiro sem valor o Banco de Angola e Metrópole. Comprara uma
quantidade avultada de acções das maiores empresas industriais de
Portugal, adquirira igualmente imóveis de valor elevado e
articulara todo o activo num império financeiro. Esse alguém
comprara, igualmente por intermédio do Banco de Angola e Metrópole,
considerável parte das acções de propriedade particular do próprio
Banco de Portugal. E se o “artista” houvesse podido prosseguir na
sua fabulosa fraude por mais um ou dois meses, conseguiria a
maioria das acções no banco nacional e ficaria em condições de
fazer desaparecer as provas contra ele existentes, livrando-se
provavelmente de ser incriminado pela burla praticada.
O PAPEL DE ALVES DOS
REIS
Artur Virgílio Alves dos Reis, filho de um
funcionário aduaneiro subalterno , nasceu em 1896, em Lisboa. Muito
novo ainda, fascinou-o a história de Cecil Rhodes, o grande
impulsionador do desenvolvimento de África do Sul, e sonhou fundar
um império semelhante nas colónias portuguesas.
Em 1924, Alves dos Reis estava preso por burla, usurpação e
abuso de poder em consequência do caso da Companhia dos Caminhos de
Ferro Através de Africa (Ambaca). Na prisão, Alves dos
Reis leu sobre a decisão do Governo Alemão de imprimir
numerosos biliões de marcos para sustentar o seu tesouro
desfalcado. Reflectiu que se pudesse encontrar algum meio de mandar
imprimir notas portuguesas, que utilizaria em proveito próprio,
poderia ainda realizar os seus projectos de criação de um império
colonial.
Conseguiu que os seus amigos lhe levassem todas as informações
possíveis sobre as operações monetárias do Banco de Portugal, e
chegou a duas notáveis conclusões: - que durante os últimos anos o
banco emitira notas muito além do limite estabelecido pela lei,
situação que poderia tornar-se embaraçosa para o banco e para o
Governo, e que o banco não possuía meios que lhe permitissem saber
exactamente o número de notas de determinado valor em circulação
numa dada altura.
Chamou igualmente a atenção de Alves dos Reis o facto de,
embora a impressão da maior parte do dinheiro estar a cargo do
banco, algumas notas de 500 e 1000 escudos serem fabricadas por
Waterlow & Sons Lda, de Londres. Portugal fora durante
muito tempo vítima de falsificações, e as tintas e técnicas de
Waterlow eram à prova de qualquer fraude. No ágil espírito de
Alves dos Reis, o grande plano começou a tomar forma.
Em Agosto foi julgado e considerado culpado de haver lesado os
accionistas das vias férreas Ambaca, mas três meses depois a
sentença foi revogada em instância superior.
Alves dos Reis escolhera como cúmplices do seu plano três
amigos especialmente indicados para realizarem a operação que se
propunha. Karel Marang Van Ysselveere, devia ser o seu testa de
ferro; José Bandeira, irmão do ministro de Portugal em Haia, seria
seu assistente. Um alemão de nome Gustav Hennies, que gozava de
reputação duvidosa em virtude de transacções monetárias irregulares
na América do Sul, era conselheiro pessoal de Alves dos
Reis.
Marang e Bandeira, de acordo com a decisão de Alves dos
Reis, conheceria apenas uma pequena parte do plano. «Quando
um homem age de boa fé – declarou mais tarde Alves dos Reis,
por ocasião da publicação das suas confissões – , a pessoa com
quem trata, especialmente se é homem de bem como Sir William,
reagirá favoravelmente a essa boa fé.» Tanto Marang como
Bandeira deviam acreditar – e durante muito tempo acreditaram –
que, embora a transacção fosse irregular, Alves dos Reis
agia com inteira aprovação do Governo de Angola para salvar a
colónia da ruína.
José Bandeira convenceu seu irmão, o ministro, a escrever uma
carta que apresentava oficialmente Marang como emissário
diplomático de Portugal – as credenciais que tanto haviam
impressionado Sir William. Logo que Marang voltou a Lisboa, depois
da sua visita a Waterlow, Alves dos Reis começou a trabalhar
na falsificação de três importantes documentos.
O primeiro era um contrato entre o alto comissário de Angola,
tenente-coronel Rego Chaves, e Alves dos Reis, representante
do sindicato incumbido da emissão de papel-moeda em Angola. O
segundo era um documento valioso em que o alto-comissário e o
governador do Banco de Portugal, Camacho Rodrigues, autorizavam a
transacção. O terceiro era uma carta do governador Camacho
Rodrigues a Sir William Waterlow, autorizando a impressão das
notas. Sem suspeitar da fraude, Marang levou essas obras primas
para Londres, e Sir William, como Alves dos Reis calculara,
«reagiu favoravelmente a essa boa fé».
Alves dos Reis chegara à conclusão de que 100 milhões de
escudos em notas de 500 eram a quantia máxima que era possível pôr
com segurança em circulação naquela época. Entretanto, mesmo para
operar com essa importância sem levantar suspeitas necessitava de
um banco. Em Julho de 1925, era autorizada a criação do Banco de
Angola e Metrópole, com sede em Lisboa e filial no Porto.
Alves dos Reis revelou-se um banqueiro competente e
engenhoso. O seu banco adquiriu prontamente a fama de facilitar
empréstimos, principalmente os de pequenas somas, com uma presteza
e uma boa vontade muito diferentes das normas vigentes nos outros
bancos portugueses. Alves dos Reis e Hennies haviam
elaborado o plano de trocar as notas de Waterlow pelas garantias
dos seus devedores. Dentro de poucos meses, haviam investido com
segurança 50 milhões de escudos da sua moeda ilegal e aumentava o
número dos seus clientes depositantes da instituição que tais
facilidades oferecia. Em seis meses o banco prosperara.
Em Junho de 1925, porém, o número de circulação das notas de 500
escudos fora notado. Houve rumores de falsificação. O Banco de
Portugal reagiu exactamente como Alves dos Reis esperava.
Anunciou oficialmente que todas as notícias de inflação da moeda
portuguesa, em consequência de falsificação ou outros motivos ,
eram infundadas.
Alves dos Reis calculou correctamente que o banco não
imaginava sequer a sua transacção e que o público aceitaria sem
discutir a declaração do governador do banco, de honestidade
insuspeita. Colocou imediatamente o restante das notas impressas
por Waterlow em investimentos sólidos e fez nova encomenda de notas
a Londres, no valor de 200 milhões de escudos, por intermédio de
Marang.
Ao mesmo tempo comprava discretamente acções do Banco de Portugal.
Decorridos dois meses, estaria de posse da maioria de acções do
banco e, consequentemente, em condições de fazer desaparecer todas
as provas da sua fraude.
Certo do sucesso, em Outubro de 1925 Alves dos Reis partiu
para Angola com o mesmo alto-comissário cuja assinatura
falsificara, e discutiu vários projectos de interesse para o
desenvolvimento da colónia. O seu banco estava pronto a financiar a
construção de uma via férrea e ao financiamento do transporte de
1000 famílias de colonos portugueses para as férteis terras dos
planaltos de Angola. O alto-comissário escutou fascinado os
planos.
Mas os acontecimentos em Lisboa sucediam-se rapidamente. O
governador Camacho Rodrigues e os directores do Banco de Portugal
haviam tido notícia dos secretos esforços de compra das acções do
mesmo. Procedeu-se a uma investigação e vários indícios
apontavam Alves dos Reis como a pessoa directamente
interessada nesse investimento. Realizou-se então a busca na filial
do banco no Porto, que levou à descoberta das notas em
duplicado.
Vindo de Angola, Alves dos Reis chegou a Lisboa no dia
seguinte, tendo sido imediatamente preso. Mas não estava vencido!
Na prisão conseguiu fabricar uma impressionante gama de documentos
faziam recair a responsabilidade da fraude sobre Camacho Rodrigues
e alguns dos directores do Banco de Portugal e que sugeriam que ele
fora apenas vítima de um conluio político. Os documentos eram tão
convincentes que dividiram Portugal durante meses em duas facções e
retardaram durante cinco anos o julgamento de Alves dos
Reis. Porém, em Maio de 1930, foi julgado e condenado em
seguimento da sua confissão e sentenciado a 20 anos de prisão, dos
quais cumpriu apenas alguns, tendo posteriormente saído em
liberdade condicional, tendo terminado assim a carreira do homem
que perpetrou a maior e mais fantástica fraude financeira da
história de Portugal. |
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