
A CAMPA DO PRETO

Uma tentativa de violação. Um escravo negro barbaramente
assassinado e mutilado pelo fidalgo seu senhor. A revolta da
população. Uma sepultura e o aparecimento de uma devoção idolátrica
a um “santo preto” nunca reconhecida, antes perseguida,
pela Igreja. E, não obstante, a resistência da tradição, do
culto... da cultura popular.
Pretextos para uma conturbada “Viagem no Tempo” até à
Campa do Preto, na pacata freguesia de Gemunde, às portas da Maia.
Fica mesmo ao lado da estrada. Hoje como nos finais do século
XVIII, quando aí terá sido erigida pela primeira vez a Campa do
Preto, ou do Santo Preto como os devotos lhe gostam de chamar. Como
aí foi parar é o que lhe explicamos na história lendária que se
segue.
É a 1790 que, actualmente, a tradição faz remontar os
acontecimentos que se descrevem. Em 1841, no entanto, a lenda
parecia estar há já muito bastante arreigada, havendo textos desse
ano que referem que os factos teriam tido lugar “naquelle sitio
ha mais de dous séculos”. Ultrapassemos a questão
cronológico, com um “era uma vez” um fidalgo prepotente
e malvado que possuía um solar em Guilhabreu, a cerca de onze quilómetros de
distância de Gemunde. Despeitado com as
recusas que uma bela rapariga da região lhe havia dado, persegue a
jovem tentando violá-la. Esta, no entanto, consegue refugiar-se num
extenso campo de trigo, ludibriando o fidalgo que, enfurecido,
ordena aos seus criados e escravos que cheguem fogo à seara, de
forma a obrigar a jovem a sair ou morrer queimada.
Aconteceu, no entanto, que um escravo negro, que se embrenhara pelo
meio do campo para atear o fogo, tendo deparado com a jovem, não só
não a denunciou como, apagando a tocha, lhe permitiu a fuga.
Enlouquecido de raiva, o fidalgo aparelhou o seu cavalo e partiu a
galope, em direcção à Senhora da Hora. Mas, amarrado por uma corda,
arrastou consigo o desafortunado escravo. Correu enquanto pôde o
infeliz. Mas, rapidamente se viu prostrado, arrastado por terra,
ferido... morto. Nem por isso desistia o fidalgo da sua cruel
vingança, continuando a sua louca cavalgada. E, pelo caminho, foram
ficando, horrivelmente mutilados, os membros e outros pedaços do
corpo do escravo.
Revoltados com o que acabavam de assistir, as gentes da região
lançaram-se furiosas na peugada do assassino enquanto,
simultaneamente, recolhiam os retalhos do cadáver. A perseguição só
terminaria em Gemunde, local onde
encontraram a cabeça, o último elemento que faltava para completar
o corpo do martirizado escravo. E aí mesmo, ao lado da estrada, lhe
deram sepultura. Desde então a Campa do Preto tornou-se numa
memória da “virtude dos mártires” e num símbolo da
revolta popular contra as tiranias. Nascia assim a lenda, a
tradição e, com elas, uma devoção muito particular e muito
enraizada na população.
O culto idolátrico ao “Santo Preto” nunca foi aceite
pela Igreja. Mas persiste e resiste até aos nossos dias. Não
obstante as inúmeras tentativas que no passado foram desenvolvidas
para lhe por fim. Entre elas foi particularmente feroz a ocorrida
entre 1841 quando o “Prelado Diocesano” fez uma
exortação pastoral sobre o tema, procurando desenganar a população
e apelar ao arrependimento da “criminosa idolatria”. Na
sequência desta condenação por parte da Igreja ao culto e
veneração naquele lugar, o Administrador Geral do Distrito, com o
apoio de forças de infantaria e cavalaria saídas do Porto e que
cercaram o local, procede a um “Exame e Averiguação (...) dos
fundamentos que havia para a crença dos povos d’aquella e das visinhas freguezias,
que veneravão alli a existência dos despojos mortaes de hum homem de cor preta que por tradição
se diz fora sepultado naquelle
sitio”. Três padres, dois juízes e
dois médicos assistem, juntamente com uma multidão, e protegidos
pelas forças militares, à escavação do local sem que tivesse sido
encontrado qualquer vestígio da hipotética sepultura. As
autoridades revolvem ainda mais as terras, arrasam uma pequena
capela existente no local e confiscam os apetrechos do culto.
Parecia o fim da Campa do Preto.
Mas a memória, a tradição e a cultura popular têm razões que a
Razão desconhece e, apenas trinta anos depois, em 1871 uma
Confraria mais ou menos clandestina fazia constar que os ossos
estavam noutro lado a muito poucos metros de distância. Recrudescia
a devoção. Apregoavam-se os milagres. Sucediam-se as romagens. Até
hoje. Apesar do combate à “heresia” se ter prolongado
também praticamente até há bem pouco. Na primeira metade do século
XX, por exemplo, o pároco local excomungou as bandas de música que
actuavam nas Festas da Campa do Preto. Outras recusavam-se a lá ir
para evitar a mesma condenação...

À Campa do (Santo) Preto são atribuídas várias capacidades
milagrosas. Parecendo ser particularmente eficaz na cura de cravos
(e de resto são estas flores que predominam nas oferendas), são-lhe
também solicitadas curas noutras áreas, como deixam facilmente
transparecer as representações em cera de vários órgãos igualmente
aí depositados.
A Campa foi sempre, também, de particular devoção para os
pescadores e peixeiras do vizinho concelho de Matosinhos, como bem
atestam a pedra de cobertura do mausoléu e o cruzeiro contíguo,
datados de 1883 e 1892, promessas dessa gente em horas aflitivas de
tempestade. De resto, os responsáveis pelas recolhas das oferendas
recordam-se que, até muito recentemente, as notas e moedas
depositadas nas caixas de esmolas frequentemente estavam
impregnadas de escamas.
De particular significado para a população de Gemunde, e para ela prova das inquestionáveis
potencialidades milagrosas do “Santo Preto”, é o facto
de durante a Guerra Colonial, e ao contrário do que sucedeu em
todas as freguesias vizinhas, não ter morrido um único jovem de
Gemunde. Em África, sua terra natal, o
“escravo santo” protegia, assim, os descendentes
daqueles que lhe haviam dado sepultura e recordado até aos nossos
dias o seu feito.
Independentemente das crenças de cada um, a “canonização
popular” da Campa do Preto, como designou Pires de Lima,
parece-nos ser um bom motivo de reflexão sobre as resistências da
cultura popular nas suas mais diversas vertentes. Que o diga a
própria Igreja que hoje parece ter enterrado o machado de guerra,
tolerando aparentemente esta devoção.
(texto: Suzana Faro e Joel
Cleto)
Como Ver

A Campa do Preto propriamente dita é permanentemente visível.
Deverá no entanto o visitante completar a sua deslocação, se
possível, com uma visita à sede da Associação Beneficente da Campa
do Preto. Localizada a poucos metros de distância, e dominando o
terreiro no qual se implanta a Campa, esta colectividade, fundada
em 1932, tem a seu cargo zelar pela preservação do monumento e é,
também, a responsável pela organização das Festas e Romaria da
Campa do Preto. No Salão Nobre da Associação vale a pena viajar
pelos retratos dos velhos fundadores e beneméritos da associação,
bem assim como contemplar algumas das oferendas ao “Santo
Preto”. A sede, com um pequeno bar no piso térreo onde pode
ser solicitada a abertura da Salão
Nobre, está aberta todos os dias das 10.00 às 19.00
horas.
Momento privilegiado para visitar a Campa do Preto é o da sua festa
que se realiza no primeiro domingo de Junho. Nesse dia, além dos
habituais festejos, merece particular referência, não só a
distribuição que a Associação faz de donativos a desprotegidos da
freguesia, mas também o “Fado-Promessa”: uma série de versos dedicados
ao “Santo Preto”, há já muito registados no cancioneiro
da região, que são cantados por um fadista enquanto os romeiros vão
pagando as suas promessas.
Que Comer
Cerejas.

Há já 60 anos que este fruto serve de disfarce, ontem muito mais do
que hoje, à realização das festas da Campa do Preto, baptizadas,
por esse motivo, pela designação de “Festas das
Cerejas”. Vendem-se às cestadas durante as festas.
Para Saber Mais

Associação Beneficente da Campa do Preto – A Lenda da
Campa do Preto. Folheto.
Hélder Pacheco – S. Cosme e
Damião de Gemunde. O Grande
Porto. Lisboa: Editorial Presença, 1986, p.80-82.
Augusto Pires de Lima – O Santo Preto. Processo Popular de
Canonização. Porto: Junta da Província do Douro Litoral,
1949.
A Cache
A cache poderá ser considerada quase “Drive In”. Tem estacionamento perto e boas
acessibilidades. A cache está inserida próximo da Zona Industrial
da Maia, pelo que a presença de Muggles
é muito frequente. Tenham o máximo de cuidado já que o local é
lugar de culto e por vezes lugar de alguns
“defumadouros” e afins… Irão encontrar uma cache
do tipo micro, com tamanho semelhante ao de um rolo de 35mm e
inclui um pequeno lápis.
Missão
Dar a conhecer a Lenda do Santo Preto e o local.
