Um Sonho é o que nos Move
Há mais de cem anos, no dia 17 de Junho de 1922, os portugueses saíram à rua e, em apoteose, festejaram a viagem aérea protagonizada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, entre Lisboa e o Rio de Janeiro.
É certo que esta se delongou por 78 dias, tantas foram as contrariedades, num total de 62 horas e 26 minutos de voo, à velocidade média de cerca de 130 km/h.
Para a sua concretização, foram utilizados três hidroaviões Fairey: «Lusitânia», entre Lisboa e os Penedos de São Pedro e São Paulo; o «Pátria», entre a ilha de Fernando de Noronha e aqueles Penedos, onde os aviadores quase perderam a vida; e por fim o «Santa Cruz», com o qual completaram a jornada, no Rio de Janeiro.
A conclusão foi o feliz resultado das invenções daqueles aviadores, como o sextante com horizonte artificial e o corretor de rumos, que constituíram o princípio da navegação aérea científica.
À medida que os aviadores superavam vários obstáculos o entusiasmo do público foi crescendo. Em breve, tornar-se-ia evidente que a hegemonia da navegação naval tinha os dias contados e o futuro seria também marcado pelos navegadores dos céus.
Duas variáveis principais afectavam a viagem: a eficiência dos métodos de navegação aérea e a fiabilidade mecânica do avião. A primeira variável foi vencida. A segunda provou que seriam precisos progressos técnicos para tornar mais habituais as viagens de longo curso
A conclusão da viagem, na Primavera de 1922, despertou o entusiasmo patriótico em Portugal, apesar da crise financeira que minava o regime. Na iconografia da época, Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram associados aos navegadores dos Descobrimentos.

O Santa Cruz, o terceiro hidroavião da viagem de 1922 e o único que chegou quase incólume aos nossos dias, se não contarmos as intempéries a que esteve sujeito durante uma exposição no Brasil. Os seus congéneres Lusitânia e Pátria-Portugal (este um nome oficioso, nunca registado) repousam no fundo do mar, junto dos penedos de São Pedro e São Paulo e a 1º 09’ de latitude Sul e 31º10’ de longitude Oeste, respectivamente.
Igualmente nas vitrines do Museu de Marinha,estão dois instrumentos simples, mas que testemunham o génio inventivo do segundo membro da tripulação – Carlos Gago Coutinho. Terá sido entre o final de 1921 e o primeiro trimestre de 1922 que Sacadura Cabral tomou uma decisão difícil: em vez de levar a bordo um segundo piloto (que seria Ortins de Bettencourt), levaria um navegador. Isso implicava que todo o esforço de manobra do Fairey seria realizado por um único homem durante uma dezena de horas, mas libertava o segundo para as importantes tarefas de navegação.
Em grande plano junto do pássaro de madeira e lona, está o corrector de abatimento. Trata-se de um instrumento desenhado por Gago Coutinho. “O vento afecta dramaticamente a navegação, sobretudo no caso de um engenho aéreo muito leve”, explica Costa Canas. “Esse efeito de abatimento tem de ser medido sob risco de os aviadores divergirem da rota pretendida e consumirem o combustível disponível.” Para tal, numa viagem prévia à Madeira, em 1921, fora testado um método: deixando cair no mar uma bóia com uma solução de soda ou potássio que, em contacto com a água, se inflamava produzindo chama e fumo, Gago Coutinho mediu o ângulo de abatimento com o seu corrector, usando para tal marcas pintadas na cauda do aparelho com um intervalo de 5 graus. “Alterando o rumo em 45º para uma segunda medição consecutiva, conseguia determinar de que forma o vento estava a acelerar ou a retardar a marcha, aferindo que correcção de rumo tinha de fazer.” O processo já era conhecido, mas Coutinho mecanizou-o, dispensando os incómodos cálculos literalmente feitos em cima do joelho, numa folha de papel, a bordo de uma máquina voadora trepidante.
A segunda inovação foi o sextante adaptado, a que chamou astrolábio de precisão. “O sextante era usado em navios desde o século XVIII para medir a altura dos astros em referência ao nível do mar”, lembra Costa Canas. A inovação, neste caso, é a sua adaptação ao contexto aéreo.
“Em altitude, a linha do horizonte não fica bem definida. Aplicando uma bolha de nível ao instrumento e fazendo previamente os cálculos principais para dispensar operações de trigonometria a bordo, Coutinho descobriu como tirar a altitude mesmo num dia de nevoeiro, voando acima das nuvens.”

Sem as suas famosas tabelas, o processo poderia demorar largos minutos, retardando a correcção. Coutinho fazia-o em seis ou sete minutos e conseguiu por isso tirar 40 posições durante a viagem principal entre a Praia, em Cabo Verde, e os penedos de São Pedro e São Paulo, já no Brasil. O risco de o fazer mal teria sido fatal numa viagem que dependia de uma variável essencial: quantos quilómetros suportariam o motor e o combustível? O próprio Sacadura só começou a dominar a estimativa de consumo na segunda tirada entre as Canárias e Cabo Verde, durante a qual constatou com horror que o comportamento de catálogo do motor Rolls Royce do Fairey não tinha correspondência real: “O motor consumia bastante mais combustível do que estava explícito no contrato de compra, lembra Hugo Baptista Cabral. Mas no alto-mar era difícil pedir responsabilidades ao fabricante pela publicidade enganosa.
Por ironia, a verdadeira dimensão da proeza só se tornará dolorosamente clara dois anos mais tarde, quando Artur Sacadura Cabral desapareceu, num voo sobre o mar do Norte enquanto trazia para Lisboa um dos novos hidroaviões comprados pelo governo. Arriscara uma vez mais numa viagem de difícil prognóstico e, desta vez, a sorte voltou-lhe as costas. Desapareceu nas águas o promotor da viagem de 1922, “a alma do raid”, o “Cícero do avião”, dirá Gago Coutinho a Norberto Lopes. Ficou o legado da sua aventura.
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