Um Mistério no Postigo da Graça
Lisboa, 1532. A noite caía densa sobre a Muralha Fernandina, com o vento a soprar frio do Tejo, carregado de sal e segredos. O Postigo da Graça, uma pequena porta entalhada na pedra antiga, era pouco mais que uma passagem esquecida, usada por mercadores furtivos e sentinelas cansadas. Mas naquela noite, algo estava diferente. Um murmúrio inquieto corria pelas ruelas da Mouraria, e os olhos da cidade pareciam voltados para aquele recanto sombrio.
Isabel, uma jovem costureira de Alfama, caminhava apressada, o xaile apertado contra o peito. Foras-lhe confiada uma tarefa invulgar: entregar um embrulho de linho, selado com cera vermelha, a um homem que estaria à espera no Postigo da Graça ao soar da meia-noite. O velho mercador que lhe dera o encargo, Dom Afonso, tinha os olhos febris e a voz trémula. "Não abras o embrulho, Isabel. Jura-me", dissera ele, antes de desaparecer na penumbra da sua loja atulhada de rolos de tecido.
Quando chegou ao postigo, a lua cheia espreitava por entre nuvens rasgadas, lançando sombras que dançavam nas pedras gastas da muralha. O silêncio era cortado apenas pelo ranger longínquo de uma carroça e pelo latir de um cão ao longe. Isabel apertou o embrulho contra si, sentindo o peso de algo mais do que linho no seu interior. Um vulto emergiu da escuridão, coberto por um manto negro, o rosto escondido sob um capuz.
"És tu a portadora?", perguntou uma voz rouca, quase abafada pelo vento. Isabel assentiu, o coração a pulsar. Estendeu o embrulho, mas, ao fazê-lo, o selo de cera partiu-se, e um brilho metálico escapou-se do linho entreaberto. Um punhal, pequeno mas ornamentado, com um cabo cravejado de pedras que reluziam como olhos na noite.
O homem de manto agarrou o embrulho com um movimento brusco, mas, antes que pudesse dizer mais, um grito ecoou da muralha. Isabel virou-se, assustada, e viu uma figura tombando da ameia, como se empurrada por mãos invisíveis. O vulto de manto desapareceu nas sombras, deixando o punhal caído no chão. Isabel, movida por um impulso que não compreendia, pegou na arma e escondeu-a sob o xaile.
Na manhã seguinte, a cidade fervilhava com rumores. Um guarda da muralha fora encontrado morto, com marcas de luta e um estranho símbolo gravado no braço: um círculo com uma cruz invertida. Ninguém sabia explicar o que acontecera, mas os mais velhos falavam de uma antiga irmandade que outrora usara o Postigo da Graça para rituais proibidos, ligados a segredos que a própria muralha guardava nas suas pedras.
Isabel, agora com o punhal escondido na sua pequena casa de Alfama, sentia o peso do mistério. O que transportava aquele embrulho? Quem era o homem de manto? E porque sentia ela que a muralha, com os seus olhos de pedra, a observava a cada passo? Decidiu que não descansaria até descobrir a verdade, mesmo que isso a levasse ao coração de um segredo tão antigo quanto Lisboa.
Dias depois, guiada por pistas sussurradas nos mercados e por um mapa rudimentar que encontrou gravado no cabo do punhal, Isabel desceu a uma passagem subterrânea sob o Postigo da Graça. Lá, entre teias e humidade, encontrou uma câmara esquecida, com paredes cobertas de símbolos idênticos ao do guarda morto. No centro, um altar de pedra, e sobre ele, um livro encadernado em couro, com páginas que pareciam pulsar com uma energia própria.
Quando tocou no livro, uma voz ecoou na câmara, não de um homem, mas de algo mais antigo, como se a própria muralha falasse. "Quem procura o segredo do Postigo, paga o preço da verdade", disse. Isabel, com o punhal na mão e o coração dividido entre medo e coragem, soube que a sua vida nunca mais seria a mesma.