A BATALHA DO CAMBEDO
Foi em 20 de Dezembro de 1946 que se travou a batalha entre guerrilheiros galegos anti-franquistas, que actuavam na fronteira contra o regime do caudilho, e a GNR, PIDE e exército português na aldeia raiana de Cambedo, Trás-os-Montes, com alguns mortos de parte a parte e que revelou a coragem e o heroísmo dos anti-fascistas. São excertos do excelente livro, já citado anteriormente, Guerrilheiros Antifranquistas em Trás-os-Montes de Bento da Cruz, editora Âncora, 2003.
Vejamos o que se passou no Cambedo na madrugada de 20 de Dezembro de 1946. Antes de mais é preciso tentar compreender como é que a presença dos guerrilheiros naquela povoação chegou ao conhecimento das autoridades.
A título de simples curiosidade, transcrevo a versão dada pelo guerrilheiro asturiano Manuel Zapico Terente. Diz ele: «Chegámos a Casaio. Ali soubemos que uma tal Remédios, conhecida do Girón, se passara ao serviço da polícia e fora a causadora da morte do guerrilheiro Bernardino e de um outro na fronteira portuguesa, perto de Chaves.» Também Francisco Martínez López (Quico), se refere a este episódio e acrescenta que, gorada a operação que ali os levara, os guerrilheiros assaltaram os armazéns da empresa e distribuíram todos os víveres pelos trabalhadores a quem explicaram quem eram e os ideais por que lutavam. Acabou tudo numa grande festa, com os trabalhadores a cantar a Internacional e aos vivas aos guerrilheiros e à República. A guarda-civil, que estava perto e foi avisada do que se estava a passar, não se atreveu a intervir. Propriamente da empresa, para além de algumas armas que encontraram, os guerrilheiros não trouxeram nada. Nem uma peseta 1).
A tal Remédios trabalhava na lavaria de uma exploração de volfrâmio. Mas, quando os guerrilheiros, chefiados por Manuel Girón, lá chegaram, ela tinha desaparecido... Decorria o ano de 1951. A imprensa da época (1946) dá-nos outra versão. Que após os crimes cometidos em Barroso por «uma quadrilha de bandoleiros espanhóis e portugueses que actuavam na raia seca, uns quatro elementos da pide, disfarçados de contrabandistas e negociantes do «mercado negro», se infiltraram, com a colaboração da guarda-republicana, entre as populações raianas, na mira de localizar os «meliantes» 2).
No entanto, e no meu fraco entender, a fonte mais fidedigna e de maior interesse para o encadeamento dos sucessos relacionados com a repressão aos guerrilheiros antifranquistas na zona fronteiriça de Trás-os-Montes durante o ano de 1946, são os arquivos da GNR. Aí encontramos uma: «Cópia da Nota Confidencial Nº.2, de 11 de Março de 1946, (como se vê, muito anterior aos crimes cometidos em Barroso ) expedida pela Rp. Adjunta do CG da GNR. Para conhecimento de V. Exa. e execução transcrevo o despacho de S. Exa. o GCG exarado num ofício, dirigido a este comando pelo Ministro do Interior. Continuam a verificar-se actos de banditismo nas regiões fronteiriças de Trás-os-Montes. As autoridades espanholas solicitam a cooperação das portuguesas e o Governo Português interessa-se pelo assunto.»
De seguida a nota indica as aldeias suspeitas e acrescenta:
«Compete ao Bat. 4 limpar essas zonas. ... Solicitar-se-á a cooperação da Guarda Fiscal, da PIDE e outros elementos. ..."Máximo segredo"...Não utilizar o telefone. ... «Contar com a colaboração de toda a Guarda-civil do Comando de Orense».
E agora chamo a atenção para o último parágrafo da referida Nota Confidencial: Deve-se contar que, em caso de encontro, os bandidos se defendem bem, pois são guerrilheiros profissionais (itálico meu) dextros em toda a espécie de ciladas e ardis. O GCG confia absolutamente no valor e desembaraço das forças do Bat. 4, designadamente da 6ª. e 7ª. Companhias – o 2º. Comandante Geral - (a) Rogério Tavares -Coronel.»
Nas primeiras páginas deste trabalho, ao referir-me à suposta protecção dada às carreiras, tive oportunidade de me referir à hipocrisia da GNR durante a ditadura. Aqui está mais uma prova dessa hipocrisia. Em público, nunca a GNR admitiu que os «espanhóis» refugiados em Trás-os-Montes durante o ano de 1946, fossem «guerrilheiros». Nas «notas internas» reconhecia que eles eram «guerrilheiros profissionais» e recomendava «cautela» com eles.
A 15 de Março o Comando de Bragança responde a esta Nota Confidencial do dia 11, dizendo que «Nada se fez por não constar haver na área do Posto de Vinhais foragidos espanhóis ou salteadores portugueses.» E acrescenta:
«Houve, é certo, desde fins de 1943 uma quadrilha conhecida por Os Cucos, que actuando em colaboração com elementos espanhóis foragidos da Guerra Civil de Espanha, praticavam assaltos à mão armada na região de Vinhais. Desde então essa quadrilha, composta de oito indivíduos, tem sido alvo de uma perseguição sem tréguas e teve o seguinte destino (cito os seus nomes porque alguns deles, como o Cuco , Liró , e os irmãos Veiga figuram em documentos de autoridades espanholas, que os conhecem e que certamente se regozijarão com a sua captura): 1 -António dos Santos, o Cuco e 2 - seu irmão Manuel; 3 -José Gomes Júnior, o Chuche ; 4- António Augusto Pais, o Mofra ; 5 -António Veiga, o irmão do Boina s; 6 -Silvério Veiga; 7 – João Manuel, o Boina s; 8- Manuel dos Santos, o Liró .»
Segundo a mesma fonte, tiveram o seguinte fim: o Cuco, o Liró, o Chuché, o Boinas e seu mano António, foram todos presos durante o ano de 1943 e metidos na cadeia de Vinhais, donde se evadiram por duas vezes: uma por arrombamento do soalho, outra por serração das grades. Presos pela terceira vez, foram transferidos para Chaves. O irmão do Cuco, o Manuel, morto pela GNR no acto da captura. Silvério Veiga, preso pelas autoridades espanholas.
Para este êxito, e à semelhança do que atribuíam aos guerrilheiros, também a GNR recorreu a ardis: praças disfarçadas de raparigas de campo, outras de camponeses de foice, pau, chapéu de palha e sacola como se fossem segadores. Citam, embora o não identifiquem, um guerrilheiro que concebeu um esconderijo na parede à qual recostou a cama. Quando a GNR aparecia, ele passava do leito para o esconderijo e a mulher fingia-se doente. Um dia os guardas prenderam a mulher e encaminharam-se com ela para Vinhais. O guerrilheiro saiu-lhes ao caminho e apresentou-se.
«As regiões fronteiriças portuguesas estão limpas de bandidos» – concluía o comandante da GNR de Bragança. As autoridades espanholas insistiam e provavam que não. E como o «Governo Português se interessava pelo assunto», a GNR resolveu actuar.
«Quartel em Bragança, 29 de Abril de 1946. O Comandante da Companhia Herculano São Boaventura de Azevedo, Capitão ORDEM A 1 - Situação – Notícias vindas de Espanha dão como certa a existência de bandidos na Região da Lomba do Concelho de Vinhais, nomeadamente nas povoações de Pinheiro Novo e Pinheiro Velho. 2 -Os bandidos são guerrilheiros profissionais, bem armados, dextros em todas as espécies de ciladas e ardis, a quem o terreno favorece e devem encontrar-se, além das povoações já referidas, nas de Cisterna, Vilarinho da Lomba, Sernande, Edroso e Carrascal, situado a N da foz da Ribeira que fica a 1300 m a SO da povoação de Contim.»
A mesma ordem manda concentrar todas as forças da GNR do distrito de Bragança, no lugar de Seixas, Vinhais, na madrugada do dia 30 de Abril de 1946.
Nos dias seguintes o comandante elabora um relatório a dar conta dos resultados desta batida feita de colaboração com a Guarda-Civil, que guarneceu a fronteira do lado espanhol. Diz que a diligência teve início de madrugada e terminou às 18 horas do dia 1 de Maio de 1946, sempre debaixo de chuva. Que bateram todas as povoações e ribeiras da região e não encontraram nada. E a modos de justificativo, acrescenta:
«A maior parte da população presta-se a encobri-los, não sei se por receio, se por ganância, ou se por qualquer outra circunstância, mas em qualquer dos casos dão sempre o carácter de humanidade. Assim, nenhuma dúvida tenho de que o facto de ter sido nulo o resultado da batida, não se justifica que amanhã não se encontrem na região citada foragidos, pois passam com toda a facilidade a fronteira e, então, podem agora estar em Espanha e muito pouco tempo depois em Portugal. Todavia estes não serão capturados pelos processos de batidas até agora usados, pela muita facilidade que têm em se deslocarem em terrenos quase inacessíveis e de serem informados, mesmo à última hora, de qualquer movimento de tropas.»
Por um relatório do comandante da Batalhão 4 ficamos a saber que no mesmo dia 1 de Maio de 1946, se realizou idêntica diligência na região de Chaves.
Diz o relatório:
«Esta batida começou a ser preparada em 11 de Março, em colaboração com a Guarda-Fiscal, a PIDE e Guarda-Civil espanhola que foi quem marcou o dia que mais lhe convinha – 1 de Maio. No dia 30 de Abril findo concentrei em Chaves o pessoal dos postos de Santa Marta de Penaguião, Sabrosa, Vila Real, Vila Pouca de Aguiar, Pedras Salgadas, Vidago, Montalegre, Boticas e Valpaços, com o qual, reunido aos elementos do Posto de Chaves, se constituíram dois Pelotões comandados pelos tenente Álvaro Henriques Antunes e alferes José Maria de Mota Freitas, comandantes das Secções de Chaves e Vila Real, respectivamente. O pelotão do tenente Álvaro foi enviado para o Mosteiro e região compreendida entre o rio Rabaçal e Travancas: S. Cornélio, Dadim, Bolideira; o do Alferes Mota de Freitas para o Cambedo, Couto de Ervededo, S. Caetano, Bustelo e região compreendida entre o rio Tâmega e os limites do concelho de Montalegre. Prenderam, no Couto, o espanhol Sérgio Bramonde, o Vicente, por se encontrar indocumentado; em Bustelo, um português condenado em Montalegre por roubo. Do resto, mais nada. Tudo bem.
Pelos habitantes da região foi dito que não têm aparecido por ali espanhóis indesejáveis a não ser um de nome Salgado, (o Juan) o qual assassinou um guarda-fiscal há meses. Mas que esse mesmo já há muito não consta que por aqui apareça, parecendo-lhes que deve estar em Espanha.» Que eu saiba, esta batida de 1 de Maio, a qual, pelos dados de que dispomos, mobilizou mais efectivos e teve maior envergadura do que a de 20 de Dezembro do mesmo ano, não suscitou grandes parangonas na imprensa, nem tempos de antena na rádio. E a diferença é esta. A de 1 de Maio não deu em nada. A de 20 de Dezembro deu em quatro mortos e alguns feridos. E deu porquê? O Juan se precipitou. Se, em vez de sair para a rua aos tiros, se esconde e se deixa estar quieto, o mais provável é que o resultado da segunda tivesse sido igual ao da primeira. Por estes elementos respigados nos arquivos da GNR, que estão longe de ser exaustivos, ficamos a saber que as autoridades de um e de outro lado da raia estavam a par, da presença dos guerrilheiros nas regiões fronteiriças, desde princípios de 1946 (3). Não vejo onde caiba a denúncia da tal Remédios. Também me parece pouco provável que as autoridades tivessem conhecimento da concentração dos guerrilheiros no Cambedo, ou, mais propriamente, no monte das Choias, a que o Demétrio se referiu (4).
O certo é que, nessa madrugada do dia 20 de Dezembro, uma sexta--feira, os moradores do Cambedo acordaram estremunhados com todos os cães da aldeia a ladrar a rebate à porta dos pátios. Assomaram às janelas e viram guardas-republicanos por todos os cantos e esquinas. Era o prelúdio da famigerada Batalha do Cambedo, cujas sequelas ainda hoje perduram. Três dos cinco agentes da PIDE que nela tomaram parte, Hélder Cordeiro Alves, Otelo Puga e Vasco Guerra, enviaram, logo nos dias 22, 23 e 26 respectivamente, relatórios ao comando daquela corporação, todos eles a dizer que fizeram e aconteceram, de modo a encarecer o peixe aos olhos dos superiores.
Deles me sirvo para uma tentativa de encadeamento cronológico das contas deste rosário de sangue e lágrimas.
Como atrás se disse, logo após os sucessos de Negrões, PIDE, GNR e Guarda-Fiscal bateram os concelhos de Montalegre, Chaves, Valpaços e Vinhais à cata do que eles taxavam de «bandoleiros» ou «malfeitores» e de quem os apoiava e iam fornecendo o que conseguiam apurar ao comandante da Companhia da GNR de Vila Real. Este, quando se julgou suficientemente esclarecido, marcou o dia 20 de Dezembro para o início das diligências. Às zero horas desse dia concentraram-se no posto de Chaves uns duzentos guardas-republicanos vindos do Porto, da Régua e de Vila Real.
O comandante dividiu-os em grupos e destinou um para cada uma das seguintes povoações: Nantes, Mosteiró de Cima, Sanfins de Castanheira, Sanjurge, Couto e Cambedo. Partiram às três da madrugada.
O do Cambedo era chefiado pelo alferes Mota de Freitas. Nele iam integrados os pides Otelo Puga e Joaquim Alves, aquele vindo do Porto e este a prestar serviço no posto de Vila Verde da Raia. Até Vilarelho, foram de camião. Daqui para a frente, a butes. Chegaram às seis. O alferes Mota de Freitas postou o pessoal à entrada e à saída da povoação, na frente e nas traseiras das casas suspeitas, a saber: a da Escolástica, a do Adolfo, a do Mestre, a do Silvino e a da Engrácia. Mas o pessoal de que dispunha não chegava para as encomendas. Na da Engrácia, a primeira à direita de quem entra no povoado, no sentido sul-norte, ficou apenas o pide Otelo Fuga de vigia à porta da rua e um guarda-republicano nas traseiras. Pelas sete horas, o alferes Mota de Freitas e o pide Joaquim Alves, vêm comunicar que está tudo apostos para um ataque surpresa ao romper o dia.
Desfecha-lhes uma rajada. Os fugitivos atiram-se ao chão e ripostam. Mota de Freitas, Joaquim Alves e o guarda-republicano entrincheiram-se atrás de uma parede e atiram também.
Nisto, a palha começa a arder e um dos fugitivos tenta a fuga. Joaquim Alves e o guarda-republicano lançam-se-lhe no encalço. Otelo Puga continua a metralhar e sítio onde o outro se atirara ao chão, não fosse ele alvejar os colegas pelas costas.
Num gesto rápido, o primeiro fugitivo volta-se e mete dois tiros numa perna ao Joaquim Alves. O guarda-republicano recua e protege-se. Os outros acodem. Como o segundo fugitivo não tugisse nem mugisse, avançam para ele. Não encontram ninguém. Acorrem a prestar os primeiros socorros ao Joaquim Alves.
Mota de Freitas aproveita para despachar um estafeta ao Couto pedir a comparência das forças para ali destacadas e um outro a Chaves a comunicar ao comandante da Companhia o ocorrido e a pedir o envio de mais forças. Otelo Puga obriga a Engrácia a abrir a porta e a fornecer a identidade dos fugitivos. Ela jura que, lá de casa, não saíra ninguém. Prendem-na (5).
Neste interim, grande alarido lá para a coroa do povo. Mota de Freitas envia dois guardas-republicanos a ver o que se passa. Eles estugam o passo, rua acima. À curva da capela deparam com um grupo quase bíblico: um camponês com um macho pela arreata; um outro em cima do macho, escachapernado na albarda, com uma garotita nos braços; em redor, populares aos gritos.
Os GNRs interceptam-nos e inquirem. Falam todos ao mesmo tempo. Que a garota está ferida. Que é preciso levá-la ao hospital. E mostram a perna da menina (6) com a tíbia e o perónio fracturados e expostos, envoltos numa toalha ensanguentada.
E o homem da arreata, pai da menina, explica. Estava ele a aparelhar o macho debaixo da varanda, quando uma saraivada de balas varreu a casa, a toda a largura. Ele cosera-se instintivamente com um poste de pedra. O macho fugira, espavorido. Mas a menina, que estava na varanda a atirar migalhas de pão às pitas, no suflagrante de se recolher dentro da cozinha, tombara na soleira da porta.
Os guardas duvidam. A casa atingida ficava bem à coroa do povo, a uns duzentos metros ou mais da casa da Engrácia, donde se haviam disparado os únicos tiros. Os populares insistem na urgência de levar a menina ao hospital, antes que se escoe em sangue. Os guardas-republicanos deixam passar o trio do macho. Os outros que fossem para casa. Havia ordens de, genericamente, deter todos aqueles que tentassem entrar ou sair da aldeia. Mas este era um caso imprevisto.
Levam os dois camponeses e a menina ao comandante. Este reúne o estado-maior. Discutem demoradamente o assunto. Por fim acordam deixar, por especial favor, prosseguir a enferma e os dois acompanhantes caminho de Chaves, a umas três horas de jornada pedestre. E com isto se derretem uns cinquenta minutos, findos os quais se ouvem tiros lá para a fronteira, a cerca de um quilómetro de distância, costa arriba.
A operação Cambedo havia sido montada de súcia entre as autoridades portuguesas e espanholas. Mota de Freitas sabia que a raia estava guardada por um forte contingente de guardas-civis. Conjecturou logo que os fugitivos (nessa altura ainda se supunha que fossem dois) haviam esbarrado nas armas espanholas e retrocedido. Ordena a um grupo de guardas-republicanos que bata a colina subjacente à fronteira.
E que os outros não descurem as entradas e saídas da povoação. Acabavam de evacuar o pide Joaquim Alves, vem de lá, do fundo de um ribeiro que flanqueia o Cambedo pelo poente, no sentido norte-sul, o eco de um tiro. Mota de Freitas envia um GNR a saber o que se passa. O emissário vai a passo e regressa a correr, todo alvoroçado. Que um dos fugitivos fora morto. Quedam todos entre espantados e surpreendidos. No fundo ninguém ia a contar com mortes.
Mota de Freitas pergunta se alguém conhece o defunto. Todos o conheciam. Era o Juan, ou Facundo . Neste comenos, chegam os vinte guardas-republicanos que haviam sido destacados para o Couto, sob o comando do sargento Meireles. Pelas onze horas principia a revista às casas. A primeira é a da Engrácia. Não topam nada de especial.
Passam à do João Valença, do outro lado da rua. Encontram o José Barroso, filho da Engrácia, deitado numa cama a fingir que ressona. Perguntam-lhe por que razão está a dormir em casa da vizinha, em vez de estar em casa da mãe. O rapaz não atina com uma resposta satisfatória. Prendem-no e passam à frente. Pelas treze horas, iam as buscas por alturas do quartel da guarda-fiscal, ouve-se de novo o ladrar duma pistola-metralhadora. Voltam-se todos para as bandas de onde os latidos tinham vindo. Vêem um guarda-republicano a tropeçar nas próprias pernas, olhos esbugalhados, lívido, sem fala. Rodeiam-no. Ele aponta o pátio da Albertina. Gagueja. Que haviam entrado três. Dois ficaram lá. Ele salvara-se por milagre.
E quem havia atirado? Não vira. Mas parecera-lhe que os disparos haviam saído de um palheiro. Os guardas-republicanos e o pide ainda operacional quedam a olhar uns para os outros, atónitos, incrédulos, hesitantes. E agora?
Eis que chegam, vindos de Chaves, os guardas que haviam sido destacados para Nantes, sob o comando do tenente Santos. Com eles vinha o pide Vasco da Rocha Guerra. Parlamentam. Alguém levanta a hipótese de os sitiados se apoderarem das armas, ou mesmo das fardas, dos guardas mortos. Que fazer?
Prudentemente, por largo, a coberto de paredes e árvores, cercam um quarteirão de três casas que parecem comunicar umas com as outras. A dada altura, assoma uma cabeça a uma janela. Otelo Fuga intima o curioso a recolher-se, se não quer ser alvejado. O curioso recolhe a cabeça, estende o braço e chispa fogo. «Mais uma vez fui bafejado pela sorte...» – deixou escrito o Puga, muito ufano pela esperteza de se ter protegido com a umbreira de uma porta. Os outros protegem-se também. O caso estava a ficar sério.
Na bagagem dos recém-chegados de Chaves vinham algumas granadas de mão e bombas incendiárias. O tenente Santos manda incendiar o palheiro. Os engenhos são lançados. O palheiro, porém, resiste. Avançam as granadas de mão. Falham também. Então obrigam o Manuel Bárcia a incendiar o palheiro - «e em meia hora tudo ficou reduzido a cinzas, restando apenas de pé as paredes».(7)
Já no pleno uso da língua, o guarda milagrosamente escapo, acusa uma das donas de casa de lhes ter dito que podiam entrar à vontade, que, ali, não estava ninguém. Trata-se de Manuela Garcia Álvarez, irmã do Demétrio e mulher do Manuel Bárcia. Prendem-na. Ela defende-se dizendo que não mentira. Que, em sua casa, não estava ninguém. Se houve tiros e mortes, isso foi no pátio da sua prima e vizinha Albertina Tiago. Perguntam-lhe pelo número de bandoleiros . Ela responde que ignora.
Obrigam de novo o Manuel Bárcia, como familiar e amigo dos espanhóis, a ir buscar os dois guardas mortos e respectivas armas.
Ele, de início, recusa. Ante a ameaça de fuzilamento, obedece. Mas demora. Arrastar um cadáver ainda quente, de mais a mais de um guarda-republicano, não é tarefa agradável, nem fácil. Gritam-lhe que se mexa. Mas ele não tem pressa nenhuma. Por fim aparece à cancela, às arrecuas, com o morto sopesado pelos sovacos, nádegas, pernas e botas a varrer o cisco do chão. - Para aqui! - gritam-lhe detrás da esquina.
Ofegante, o Bárcia alija o cadáver no sítio indicado. Identificam-no. Trata-se do soldado de 1ª. classe do posto da GNR de Chaves, José Joaquim, de 34 anos, solteiro, natural da freguesia da Sé, Lamego. Está crivado de balas de alto a baixo (8).
Gritam de novo ao Mestre que se despache. Mas ele não se dá por achado. De vez em quando alija o cadáver e limpa o suor da testa ao canhão da véstia. Por fim, com um arranco de desespero e revolta, arrasta o outro cadáver para a rua principal, onde o comandante e respectivos lugar-tenentes o aguardam, cosidos com as paredes. Identificam-no: José Teixeira Nunes, 37 anos, natural da freguesia de Oliveira, Amarante, casado e pai de três filhos menores. Apresenta, na região posterior do tronco, nove orifícios correspondentes à entrada de outras tantas balas de calibre 9, disparadas à queima-roupa (9). Tratam de despachar os dois mortos para Chaves. O tenente Santos aproveita para pedir a comparência do comandante da Companhia e o envio de mais granadas.
Enquanto isto, o tiroteio continua. Impossibilitados de sair de casa, pessoas e animais desesperam. Assustadas, as crianças choram. Espavoridas, as aves fogem das árvores e as galinhas das eiras. Incomodados pelas bombas e pelos tiros, os cães uivam, incessantemente. Apreensivos e tristes com a morte dos dois companheiros, os guardas só desejam uma coisa, que os espanhóis se rendam e o tiroteio acabe. Mas eles não se renderam, tarde fora, até a noite cair. Para evitar que eles se aproveitem das trevas para se evadirem, os sitiantes incendeiam duas medas de palha situadas defronte da casa da Albertina, do outro lado da rua. Neste meio tempo, arribam os guardas-republicanos que haviam sido destacados para Sanfins de Castanheira, sob o comando do tenente Antunes. Com eles, o pide Hélder Cordeiro Alves (10). Trazem dois projectores eléctricos. Colocam-nos de modo a iluminar as traseiras da casa da Albertina.
Entretanto, noite dentro, vão chegando: o comandante da Companhia, capitão Alexandre Medeiros; um destacamento da PSP do Porto, e, com ele, o pide Vitorino Antero Alves; um pelotão de Caçadores 10, de Chaves, especializado em morteiros de campanha. Instalam o comando no quartel da guarda-fiscal, casa de loja e sobrado, com duas janelas. A do norte dá para uma travessa de três metros de largura. Do outro lado ficam duas cancelas contíguas. A primeira de acesso ao eido do Manuel Bárcia; a segunda ao quinteiro da Adelaide Teixeira, de onde, a espaços, vêm rajadas de pistola-metralhadora. O comandante em campo ordena a um agente da PSP, vindo do Porto, que arremesse granadas de gás lacrimogéneo sobre o «covil dos bandoleiros» cujo número toda agente calcula serem seis ou mais.
Mas o vento pica do norte e vira o feitiço contra o feiticeiro. Desistem. A noite, sem lua, está gelada. Uns sopram às mãos, outros batem os pés no chão. Há quem, sorrateiramente, deslize para dentro dos pátios, dos estábulos, dos palheiros e se recoste às paredes, armas em descanso. No quartel da guarda-fiscal há uma braseira. Os maiorais avivam as brasas e trocam opiniões. Todos concordam em que eles não têm qualquer hipótese. Ou se rendem ou morrem. É tudo uma questão de tempo. Dos habitantes do Cambedo, raro é aquele que consegue pregar olho. Pelas cinco horas, o palheiro incendiado extingue-se de todo.
O comandante recorre de novo a um PSP perito em foguetes luminosos. Estes, porém, chegam ao fim e o dia não há meio de romper. Então o pide Vitorino Aires oferece-se para incendiar outra meda de palha existente no local. O comandante aceita o alvitre. Mas a tarefa não é fácil, dado que o alvo fica no raio de acção das balas inimigas. O Vitorino aproxima-se o mais que pode e lança um fachuco de palha embebido em petróleo. Com tão boa fortuna que a meda se incendeia.
A aurora encontra o Cambedo transformado em campo de batalha: quartel-general, elementos de ligação entre os vários sectores, tendas de campanha, trem de abastecimentos, apoios logísticos, posto de primeiros-socorros. Aperta-se o cerco à antiga morada da família Bárcia, agora subdividida em três facções autónomas: a do Mestre , a da sua irmã Adelaide, casada com um guarda-fiscal de nome Octávio (11) e a da sua prima Albertina: todas elas contíguas e comunicantes entre si pelos respectivos quinteiros. (12)
O pide Vitorino Aires, um agente da PSP e um guarda-republicano conseguem entrar nos baixos da casa da Albertina. Mas ao tentarem subir ao primeiro piso, ouvem zunir as balas rente às orelhas e põem o corpinho a salvo. Então o comandante manda evacuar todas as casas em volta do quarteirão dos Bárcia, que vai ser bombardeado.
Os soldados de Caçadores 10 instalam-se num morro rochoso sobranceiro à povoação, a uns cento e cinquenta metros para nascente, e despejam uns trinta morteiros sobre o alvo. A folhas tantas, aparece um homem de pistola-metralhadora em punho em cima dum telhado. Os artilheiros apontam-lhe os canhões. O homem desaparece. Os morteiros calam-se. O silêncio no quarteirão é tão profundo e prolongado que todos se convencem de que os bandoleiros estão todos mortos.
Aperta-se de novo o cerco. O pide Vitorino Aires e três polícias adiantam-se para o reconhecimento. São recebidos a tiro e recuam. Felizmente para eles, sem mazela de maior. Apenas um pequeno arranhão na face do pide, causado por uma pequena lasca de pedra que saltou sob o impacte de uma bala. À vista disto, o comandante manda alargar de novo o cerco. E os morteiros recomeçam.
A dado momento, grande alarido do outro lado da rua. O comandante manda fazer sinal aos soldados para suspenderem o bombardeamento e acorrem todos a ver o que era. Um rebo, que um morteiro fizera saltar de um muro, atingira um agente da PSP no peito. Correm com ele em charola para o posto médico. Reata-se o bombardeamento. Ao cabo de uns setenta morteiros despejados sobre o quarteirão, dele não restam mais que ruínas fumegantes (13).
É tempo de apalpar de novo o terreno. Ansiosos por mostrar serviço e subir na hierarquia, os pides estão sempre na brecha. Vitorino Aires, acolitado por um grupo de agentes da PSP e guardas-republicanos mais afoitos, entra no pátio da Albertina e descarrega uma rajada de pistola-metralhadora contra uma porta que ainda se encontra intacta e fechada. Como ninguém responde, avança para ela.
De chofre, vem detrás da porta uma descarga traiçoeira. O pide dá um corcovo instintivo para o lado e corre para trás de uma parede (14) . Sente um arrepio na perna esquerda. Levanta a perna da calça para ver o que era. Uma bala que lhe varara a coxa de lado a lado, logo acima do joelho. «Olha que sorte!» -suspira ele, ao reparar em mais cinco buracos no sobretudo... Como certos animais que se encarniçam à vista de sangue, volta à carga, desta feita contornando o muro pelo lado de fora, não fosse o diabo tecê-las. Repara num rombo de morteiro na parede, que se lhe afigura no enfiamento da porta donde havia sido alvejado. Mete o cano da pistola-metralhadora no buraco e despeja o carregador. Enquanto aguarda resposta, ouve alguém gritar: - Lá vai um!
Volta-se e enxerga um indivíduo a fugir em direcção ao monte. Lança-se-lhe no encalço. Mas já um guarda-republicano traz o homem catrafilado pela gola do casaco. Apenas um pacífico habitante do Cambedo que, aterrorizado com tanto morteiro e tanto tiro, dera às de Vila Diogo. Como a perna continuasse a sangrar, o pide requisita uma toalha e atalha. Os camaradas levam-no, quase à força, ao posto de primeiros-socorros. Um médico faz-lhe o primeiro tratamento e aconselha a evacuação para o hospital de Chaves. O ferido jura que não sai do Cambedo sem se vingar. E volta ao campo de operações. Mas eis que a perna se lhe inteiriça e recusa a andar. Embora contrariado, o Vitorino Aires consente na evacuação (15).
A esse tempo, já os agentes da PSP especializados em bombas incendiárias haviam conseguido lançar fogo ao que restava do palheiro e afins. Do montão de ruínas restam apenas um lagar e um pequeno forno intactos, a poucos metros um do outro. Conseguem colocar metralhadoras no enfiamento dessas dependências. Estabelece-se um pingue-pongue de tiro vai, tiro vem, que parece nunca mais ter fim.
Pelas dezasseis horas surge, ao cimo das escadas da casa contígua à da Albertina, um sujeito de certa idade. Prendem-no. É Primitivo Garcia Justo, pai do Demétrio. Enquanto o interrogam, o ataque ao lagar e ao forno intensifica-se. Descargas de metralhadora, granadas de mão, bombas incendiárias, disparos de carabina. Os espanhóis vão respondendo. Parcimoniosamente, como quem poupa munições. Até que se calam de vez. Os atacantes suspendem o fogo e aguardam, prudentemente.
Nisto, aparece à boca do forno um lenço branco. Pouco depois sai o Demétrio, de mãos no ar. Primeiro algemam-no. Depois esbofeteiam-no. Perguntam-lhe pelos companheiros. Responde que lá dentro está só o cadáver do seu camarada Garcia, que se tinha suicidado.
Notas:
(1) - Citados por Santiago Álvarez in "Memória da Guerrilha", Edicións Xerais de Galícia, 1991, pp 97 e seguintes.
(2) - «Por determinação superior, encontrava-me desde o dia 26 de Outubro passado, na região de Vinhais, Chaves e Montalegre» - pide Hélder Cordeiro Alves, « in Relatório sobre o que se passou no Cambedo». Segundo o pide Vasco da Rocha Guerra declarou no Tribunal Plenário do Porto, «o sargento Prieto, da guarda-civil espanhola, colaborou com as autoridades portuguesas na captura dos elementos do bando.»
(3 - A 14 de Junho de 1946, o capitão Herculano São Boaventura, comandante do Quartel de Bragança, envia um ofício ao Sr. Comandante do Batalhão n.º 4 da GNR do Porto, onde diz: «Há indicações de que na região da Lomba, do concelho de Vinhais, nomeadamente nas áreas de Sernande e Contim, estão aparecendo refugiados espanhóis e bandidos do mesmo país que auxiliados por um ou dois larápios portugueses permanecem naquela zona;» De seguida solicita carta branca para utilizar o camião afecto a «esta sub-unidade» na caça aos ditos refugiados. Um outro ofício oriundo do Quartel da GNR do Porto, com data de 17 de Setembro de 1946, manda louvar os soldados da 7.ª Companhia em serviço no Posto de Vinhais, Alfredo Augusto, Aleixo Fernandes e Cândido Augusto Pires «porque conseguiram descobrir e capturar, no dia 28 do mês findo, o chefe da quadrilha, um foragido espanhol, que resistiu, conseguindo dominá-lo depois de o terem ferido gravemente numa perna, tendo-o levado para o hospital de Bragança… onde lhe foi amputada a perna direita...» «O ataque foi feito nas margens do rio Rabaçal, junto à povoação de Sernande...» «O preso vai ser entregue à Polícia de Vigilância.» Este ofício, que nem sequer identifica o preso, vem provar que ainda há muita coisa que nós ignoramos a respeito dos guerrilheiros e da repressão que lhes foi movida.
(4) - Correu, por essa altura, não sei com que fundamento, o boato de que os guerrilheiros teriam agendado para o dia 21 o assalto ao palacete do senhor Domingos Veiga Calvão, em Vilela Seca.
(5) - Interrogada a 21 de Janeiro de 1947, na PIDE do Porto, a Engrácia manteve-se numa negativa inexpugnável: «Que nesse dia não se encontrava qualquer indivíduo na sua residência.» «Mais uma vez aconselhada a dizer tudo o que sabe sobre o assunto, visto já estar provado que não está dizendo a verdade, respondeu: Que nada mais tem a dizer. E mais não respondeu.» Inquirida de novo em 6 de Fevereiro, acabou por admitir que na noite de 19 para 20 de Dezembro, o Juan dormira lá em casa.
(6) - Silvina Fernandes Feijó, felizmente ainda viva, mas infelizmente ainda a manquejar da , muito embora os peritos médicos a «dessem (ao fim de cento e dezoito dias de doença e impossibilidade de trabalhar) por completamente curada dos ferimentos descritos no exame directo deles não tendo resultado qualquer aleijão ou deformidade»...
(7) - Depoimento do pide Otelo Fuga, no Plenário do Porto.
(8) - Segundo o relatório da autópsia, umas treze ao todo.
(9) - Do relatório da autópsia. Para além deste dois, foram ainda feridos, com maior ou menor gravidade, cinco soldados da GNR, três dos quais, Jaime Ernesto Alves Leite, atingido por dois tiros num ombro, António Matias, a quem uma bala levou duas falanges do indicador direito e José da Fonseca Nunes, com escoriações no tórax e fractura duma costela por ter caído abaixo dum muro, foram para ao hospital de Chaves.
(10) - «Em toda a parte de Castanheira, nomeadamente em Mosteiro, Sanfins, Santa Cruz e Cimo da Vila, foram revistadas todas as casas suspeitas nada sendo encontrado, mas foram feitas prisões dos indivíduos acusados de serem cúmplices dos malfeitores.», deixou escrito o Hélder.
(11) - Após estes sucessos, o guarda-fiscal Octávio Augusto, a prestar serviço no posto do Cambedo, foi transferido para o Gerês, onde acabou por se suicidar.
(12) - Alguns relatórios afirmam, não sei com que fundamentos, que os guerrilheiros tinham feito buracos nas paredes meeiras de modo a transitarem de uma para as outras.
(13) - A casa da Albertina Tiago foi a que mais sofreu com os bombardeamentos. Ainda hoje se encontra em ruínas.
(14) - Manuel Afonso Pinho, do Cambedo, esclareceu no Tribunal Plenário do Porto, «que o agente Aires foi ferido em frente da adega do Bárcia e não da Albertina.» 15) - Ao cabo de quinze dias de convalescença, os médicos deram o Vitorino Aires como completamente curado do ferimento, do qual não resultou qualquer deformidade ou aleijão.