Narciso estava sentado na já habitual esplanada do café ali ao pé do Farol. Hoje em particular tinha de redobrar a sua técnica de disfarce: além de ter de passar por um habitante local sem segundas intenções, teria de se conter ao ler as notícias frescas.
Infelizmente hoje não tinha escolha: tinha de ler o Correio do Milho, ou o chamado CM. Ainda que as notícias saíssem quase sempre primeiro naquele, o carácter forçado e chocante, talvez até um pouco inventado à última da hora, criava sensações mistas quanto à veracidade de certas informações.
Com um nervoso miudinho, intercalado com ironia e sarcasmo, o espião lia atentamente a primeira página do jornal:
Tudo correu às mil maravilhas. Ainda havia pontas soltas, ninguém sabia ao certo o que tinha acontecido naquele final de tarde e muito menos o que ocorreu durante a madrugada. O plano estava muito bem delineado: os mantimentos provinham de Barcelos; a lancha que levaria a mercadoria até ao U-35 provinha de Vila Praia de Âncora; os negociadores portugueses eram de Âncora, de Seixas e de Gandra; os intermediários eram espanhóis; e o destino era o submarino.
E isto tudo poderia ter sido mais direto se o intrometido do António d'Almeida, o 1º Cabo da Guarda Fiscal de Esposende, não tivesse reparado no ar suspeito do carro de bois que passava todos os meses pelo mesmo local sem no entanto apresentar quaisquer documentos da carga ou luzes de identificação. Muitas mensagens foram trocadas entre as bases do contrabando e o submarino.
No dia 2 de Maio tinha de ser diferente: a enorme quantidade de espiões que salvaguardavam a atividade ilícita já sabiam de antemão a existência de uma busca em Ofir e já quase na entrada da Ponte de Fão. Para não correr tantos riscos, a carga foi dividida em partes. A lancha que vinha diretamente de Barcelos pelo rio Cávado carregava gasolina, milho e o carro de bois quando saiu tinha 20000 ovos, legumes, frutas. Este carreteiro era para disfarçar e antes de avistar Ofir, ainda na Apúlia, descarregava boa parte da mercadoria para uma lancha. Tudo, ou quase tudo se corresse mal, iria parar à Foz do Cávado.
Infelizmente 9000 ovos foram apreendidos. O resto da tralha, a mais importante para o submarino, estava a salvo nas docas junto à Restinga até chegar a hora certa. Esta hora não foi escolhida por acaso: uma da manhã, noite de nevoeiro cerrado, clima propício para o som emitido pelo Farol abafar o barulho do encontro das três lanchas. Doze minutos antes do encontro com os alemães bastava cruzar e sobrepôr as fitas: as que tinham sido interceptadas no dia anterior e a já habitual que vinha da terra mais setentrional. Só a de Vila Praia de Âncora, portadora da chave final que podia ser compreendida pela tripulação do U-35, é que iria até ao ponto final.
Como era bom lembrar de toda esta aventura na qual tinha participado. Era tão bom que Narciso não conteve o entusiasmo e deixou muitas vezes o sorriso estampado na face, de modo a destacar-se dos restantes com ar menos simpático dada a notícia. Nem sequer tinha dado conta que o café já estava frio. E como os 600 escudos ganhos na anterior noite permitiam-lhe ter o luxo de ir pedir outro, levantou-se. Não teve tempo de reagir: por trás dele esperava o António d'Almeida. Foi preso.
Após buscas algo demoradas pelas zonas frequentadas pelo espião, este recusou-se a dizer algo, foram recolhidos os seguintes documentos:
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Inventário |
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Anotações |