A Alma do Lobo
«Em maio deste ano de 1734 saiu do interior da montanha do Gerês uma desconhecida e formidável fera, que discorrendo por toda a vizinhança despedaça o que acha vivo, seja gente, gados ou ainda outras feras. A tudo avança embravecida. Corre com tanta velocidade e subtileza que em breve tempo tem aparecido sem ser sentida, a não ser pelas crueldades que obra. Não se sente tanto a multidão de gados que tem despedaçado - dos quais não se aproveita mais que o sangue - quanto as muitas pessoas que em várias partes tem morto. Afirmam alguns que são treze homem e quatro mulheres, os mais deles pastores, e que alguns foram achados com as entranhas comidas. é UM bicho muito comprido, o pescoço curto, a cabeça grande, os olhos grandes, a boca demasiadamente rasgada, guarnecida toda de dentes grandes e pequenos, os quais traz sempre à vista. Têm-se feito grandes montarias sem ser possível descobri-lo, mas ainda não para o seu estrago. A Câmara de Montalegre tem prometido um grande prémio a quem o matar, em cuja diligência se continua. Queira Deus tenha êxito.»
Notícias de Montalegre, 1734

O dia que ficou para a história foi em vésperas de Natal. Estava frio e nevoeiro, mas um pastor conseguiu ver dois lobos, talvez três, a descerem para o ria. Correu a fazer o anúncio na aldeia e a multidão juntou-se. Era pouco provável que subissem à segurança das fragas antes do cair da noite, por isso o povo tinha de ser rápido. Era frequente os aldeãos encontrarem vestígios das feras no velho carreiro que percorre a aldeia a norte. Fechando esse caminho, os animais
ficariam encurralados. Pois era precisamente aí, junto ao muro de delimitação de urn lameiro, que fica a espetacular armadilha, com um muro de 2,20 metros de altura. «Para armadilhar o fojo bastava vedar a passagem com tábuas e confiá-las à guarda de um fafioto destemido, bem como dissimular o poço com vegetação», lê-se no artigo do antropólogo Pedro Primavera. O conselho da aldeia decidiu fazer a batida nessa mesma noite. Cada casa mandaria mv homem. Distribuíram-se os homens pelas 16 esperas, dois em cada uma. Os restantes far-se-iam ao mato, mas tiros só os podiam mandar para o ar. Uma bala desviada podia falhar o alvo e acertar num homem. Para tragédias já bastava o lobo.
Poupavam-se as palavras, como manda o costume transmontano. Os batedores tomaram os carreiros que desciam até às margens do Cávado. Simultaneamente formou-se a linha dos caçadores das esperas, armados com latas, paus e pedras. Ainda não soavam as seis quando foi lançado um petardo. Era o sinal. Os batedores iniciaram a carga, gritando impropérios e fazendo barulho. Numa questão de minutos, três lobos começaram a subir a serra a galope. Depois, mais atrasado, um quarto, em passo lento. o sol já raiava quando o último bicho chegou j zona do fo. Nas esperas fazia-se silêncio, mantinha-se o corpo quieto. Um dos guardas, sem se aperceber que havia um quarto predador, deixou passar três e levantou-se aos gritos. Os animais estacaram, perplexos. Nisto as tábuas de uma guarida cederam com estrondo, graças ao peso dos homens. Faio mote para retomarem a correria em direção à cova de quatro metros de profundidade, tapada por giestas. Tombaram todos ao mesmo tempo. O quarto bicho conseguiu escapar-se. Apercebeu-se da barulheira e voltou atrás, passando pelos batedores como uma seta. Junto ao fojo, o povo regozijava. As crianças e as mulheres da aldeia vieram todas, não é todos os dias que se apanham três feras. Depois foi alçar da espingarda e disparar. Pum, pum, pum. cada lobo foi atado pelas patas a uma vara e levado para o centro da aldeia - ainda há registos fotográficos desse dia. Os transportadores passaram por todas as casas do povoado, eem todas angariaram fumeiro e vinho. Depois ataram os animais a urna árvore e içaram os bichos. Juntou-se o povo em festa, com a comida e bebida que se tinha arranjado. Nove meses depois, em setembro de 1949, nasciam 20 crianças em Fafião
Malditos, histórias de homens e de lobos, Ricardo J. Rodrigues

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