Situada em plena Serra do Cercal, ainda na freguesia de Vila Nova de Milfontes, em lugar aprazível, a ermida da Cela, cuja invocação variou entre Nossa Senhora e Santo António, constituiu, para a população das redondezas, um motivo de atração festivo-religiosa.
Até à década de 1950 o povo acorria à ermida, mormente em determinadas datas, fazendo passeios, muitas vezes em burricada, em que a componente recreativa e social estava muito presente. As alumiadas, as vigílias e os bailes, em particular no 1º de Maio, faziam, igualmente, parte de algumas práticas da religiosidade popular, eivadas de reminiscências pagãs, que a ermida concitava. Nunca foi, porém, um santuário de multidões, mas apenas de pequenos grupos de pessoas, aliás de acordo com a demografia regional.
A história da ermida remonta ao século XVI, embora possivelmente se tivesse erguido sobre um mais antigo santuário, e liga-se à figura de um frade franciscano, de seu nome Bernardino, aqui refugiado da vivência do mundo, como era corrente no fenómeno do eremitanismo. Ele morreu quando, chamado a Lisboa pelo seu Provincial, a caravela em que seguia naufragou na barra do rio Mira. Segundo a narrativa da sua morte, transmitida por escritores de feitos e casos religiosos, Frei Bernardino terá predito o naufrágio ao embarcar e, logo depois, as águas transportaram o seu corpo, esteiro acima, até à proximidade da sua cela, onde foi encontrado, com as mãos cruzadas sobre o peito e o breviário enxuto na bolsa. O facto, considerado milagroso, levou a população a erguer uma ermida no lugar da sua cela, devotada, nos primeiros tempos, a São Bernardino de Sena, santo italiano muito em voga, que tinha o nome do nosso eremita.
Deixando o antigo relato imbuído de maravilhoso, vemos, hoje, que o edifício se encontra em ruínas, com a alvenaria de xisto e barro à vista. É ainda bem legível a sua estrutura composta: nave e capela-mor rectangulares, separadas por arco triunfal; e pequena sacristia, também rectangular, adossada à capela-mor, segundo determina a regra, do lado da Epistola. A fachada obedece ao modelo dito "em bico", o mais usual nas singelas ermidas rurais, e apresenta, à esquerda de quem entra, vestígios de uma sineira; da cobertura do corpo principal, em duas águas, resta apenas o sector correspondente à capela-mor.
Na pedra da verga do portal é visível uma inscrição, gravada pela mão de alguém sem domínio da escrita, com a data, aparentemente, de 1704, evocando um momento em que recebeu obras de monta. No interior da capela-mor, perduram vestígios de pinturas murais, testemunhos das beneficiações levadas a cabo por finais do seculo XVIII.
A ermida está registada em nome da Paróquia, mas subsiste alguma confusão pois um particular reclama a sua propriedade. Tudo resulta, parece, de um lapso aquando dos registos efectuados no tempo da I República, lapso que, no entanto, foi resolvido, mais tarde, pelo Estado a favor da Igreja. Em todo o caso, urge resolver a questão do registo predial.
Nos últimos anos, a ermida da Cela tem continuado a sofrer o efeito da passagem do tempo, com a agravante de ter sido alvo de "caçadores de tesouros", que, naturalmente não encontraram qualquer tesouro, mas, esburacando o pavimento, acentuaram os riscos para a "saúde" do pequeno edifício. Um grupo de amigos da ermida, levou a cabo, há alguns anos, o escoramento dos vãos, que acusavam sinais de estarem a ceder.
O "destino" desta ermida é exemplar: com a transformação da sociedade, com o abandono das antigas práticas religiosas e festivas, com o próprio esquecimento da sua existência, o pequeno templo quedou-se abandonado, embora se encontre em lugar aprazível e constitua um interessante pedaço de património cultural. Nem o aproveitamento turístico, possivelmente a solução para a sua manutenção e o seu uso, foi até hoje equacionada. Este é, portanto, um "dossier" que, apesar de tudo, continua em aberto.
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