«Esta é a lenda contada pelas pessoas mais idosas que conhecemos, tinha origem no vale que acompanha a linha do Oeste, lado nascente, desde o aqueduto existente na estrada que vai da estação do Louriçal aos cozinheiros, até à estrada que, indo da Marinha (largo da feira) desemboca nas Matas. Aquele vale, cheio de matagais e com arborização muito densa, era objecto de superstição popular.
Antes que a noite caísse, ninguém se atrevia a quedar-se por aqueles sítios.
A crença popular atribuiu causas sobrenaturais a certos fenómenos que a sua razão é incapaz de explicar. Como consequência lógica desta atitude, surge um sem-número de lendas, algumas delas bem curiosas.
É o caso da lenda do vale do inferno, contada pela Sr.ª D. Maria José Pereira, filha de duas testemunhas do ocorrido.
Eis como tudo se passou:
Certo dia, há cerca de noventa anos, um homem descrente afirmou em público que aquilo era tudo conversa do povo e dos padres, pois o Belzebu, se existisse, tinha mais que fazer do que ir para aquele sítio, tão perto de povoados.
Naquela época, tais ditos, constituíam «uma grave ofensa à moralidade pública e um perigoso afrontamento à religião nacional»; por isso não faltou quem apelidasse o blasfemo de «charlatão que queria vender o seu ateísmo à custa de mentiras». Metralhado por opiniões deste quilate, o descrente não hesitou em apostar com varias pessoas que, em determinada noite, se deslocaria ao vale, durante a «hora aziaga» (meia-noite) para ver se o Mafarrico aparecia, ou não.
Esta notícia foi rapidamente espalhada pelos povoados limítrofes. Nuns lados, foi recebida com sinal da cruz, noutros, com sorrido de compaixão, e noutros ainda cm expectativa (isso de desafiar o diabo era obra!).
Quando chegou o dia aprazado, a Marinha das Ondas foi invadida por uma turba curiosa de desejava ver com os seus próprios olhos tal mistério.
A noite tomou o lugar de seu irmão branco. Os sinos tocaram as Trindades. A multidão encaminhou-se para o Vale do Inferno, acompanhando o aquele que ousou desafiar o Deus do mal.
Chegaram. O populacho, resolveu colocar-se a uma distância que oferecesse garantias de fuga rápida, se algo corresse mal. O ousado encaminhou-se para o sítio onde devia recitar o mote:
Eu venho aqui por aposta
Eu por uma aposta qui vim
Rapaz do Barrete Encarnado
Apareça-me agora aqui.
O repicar dos sinos dum campanário anunciou a hora da revelação.
Fora da vista do povo, mas perfeitamente audível, o corajoso começou a declamar a quadra.
Recitou o primeiro… nada
Recitou o segundo… nada
Recitou o terceiro… nada
Disse a primeira palavra do quarto e … calou-se subitamente!!!
A debandada foi geral. Coxos e anafados ultrapassaram pessoas sãs e escorreitas. O medo impulsionava os membros motores de todos quantos assistiram àquela demonstração de poder sobrenatural.
A igreja, rapidamente se encheu de pecadores à espera de confissão.
O resto da noite foi dormida no meio de pavorosos pesadelos.
A manhã seguinte trouxe consigo a coragem que a noite roubara e um grupo de temerários resolveu ir ao local maldito procurar vestígios do que de tão transcendente ale se passara.
Os seus esforços foram inglórios. Parecia que, naquele lugar, nada se tinha passado. Do corpo do sacrificado ateu, até hoje, nada se encontrou; até hoje não se averiguaram as causas do seu desaparecimento.
Vale do Inferno – até que ponto acabará a feitiçaria e começará o assassínio?!»
Fonte: Marinha das Ondas - Na história e na lenda, Cintrão, Manuel da Costa
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