Num folheto datado
de Novembro de 1937 subscrito pela corporação fabriqueira do
Entroncamento podemos ler, entre outras, as seguintes frases :
"ocupa um Centro importantíssimo de comunicações a vila do
Entroncamento; mas é absurdo julgarmos possível que da força
espiritual da sua Igreja dependa algum dia a segurança de todo o
país". "Escolhermos para a nossa Igreja o estilo do renascimento da
época de D. João III por nos parecer mais religioso, mais belo e
mais nacionalizado que os estilos que lhe sucederam". " Voltemos a
considerar a Igreja pela sua dupla finalidade, Deus e Pátria". As
duas primeiras frases eram um apelo ao auxílio para a construção
desta Igreja, um apelo eivado de patriotismo exacerbado (claramente
patente na terceira das frases), um patriotismo indissociável de
uma época em que o Império, velho de quatro séculos, começava a
apresentar marcas do tempo e esboroar-se.
Absurda à primeira
vista, é surpreendente a relação que se pode estabelecer entre a
igreja do entroncamento e o seu modelo -a da Atalaia- e os dois
maiores poemas épico escrito em Portugal: Os Lusíadas de Luís de Camões eA
Mensagem de
Fernando Pessoa.
A lição que se
extrai d' Os
Lusíadas é a
mesma da Igreja da Atalaia "somos grandes e cada vez maiores". Num
intervalo de quatro séculos o declínio e o apelo: "fomos grandes e
é necessário que o voltemos a ser". Esta é a lição de A
Mensagem de
Fernando Pessoa, e é também o apelo que se conserva na nossa Igreja
: a veneração de santos Portugueses, verdadeiros heróis de um povo
cristão e católico, tentava controlar o incontrolável. O estilo, as
legendas, os santos, todos tinham um objectivo fundamental,
objectivo que se não pode cumprir. A Igreja do Entroncamento é um
templo com duas dimensões : o templo da Fé Sagrada e o templo hoje
imperceptível do patriotismo.
O interior do templo divide-se em três naves de quatro tramos. Ao
nível do terceiro tramo abrem-se as duas portas laterais.
A iluminação vêm-lhe de oito grande janelas de voamento, uma por
tramo, que repetem, aumentando o desenho das janelas da capela-mor
da igreja da Atalaia.
Os arcos da nave apoiam-se em colunas capitalizadas, e vão morrer
de encontra as paredes do coro e da capela-mor. Cobre as naves um
tecto de madeira.
Entra-se na igreja pela porta principal, que se abre para uma
espécie de nartex ou vestíbulo, (piso térreo do campanário). Sobre
esta antecâmara, que cumpre as funções de quebra vento, temos um
primeiro piso, com janelão que se rasga sobre o portal, e arco de
volta inteira que se abre sobre a nave central.
Note-se que a ausência de clerestório permitiu o elevar das
colaterais e o consequente alargar o coro sobre estas.
O arco do triunfal, primorosamente lavrado, estabelece a ligação
com a capela-mor, de planta poligonal e abobadada.
Podemos dizer que a igreja do Entroncamento repete a estrutura da
da Atalaia e inova parcialmente a decoração. Com efeito, a
disposição das naves, da capela-mor e sua abóbada, o arco triunfal,
as colunas, o campanário e o portal buscam inspiração na Atalaia;
porém toda a decoração de azulejos, pinturas, legendas, pavimentos,
altares, púlpito, baptistério, santos, etc., não encontram
antecedentes na Atalaia, o que liberta a igreja da Sagrada Família
as acusação de plágio. Não podemos minimizar, com isto, a
importância histórico-artístico da igreja da Atalaia que é, sem
sombra de dúvida, um dos mais preciosos tesouros do Renascimento
Português.
O portal da igreja da Sagrada Família é o elemento mais opulento da
sua construção. Na estrutura e ornamentação geral imita o da
Atalaia, foram porém introduzidas pequenas alterações.
Duas pilastras sobre pedestais e entablamento direito,
enquadrando o arco. Este, quando a espessura da parede o pede,
desdobra-se na curva moldurada da entrada, por um espaço em forma
de tramo de abóbada repartido em painéis, e pelo arco do vão,
levemente mais estreito. Como acidente arquitectónico, insere-se
nos ângulos dos pés direitos internos, ima fina coluna balaústre. O
ornato encontra-se : nas pilastras, no género de candelabros com
complementos vegetais, rematando na mísula dos Apóstolos; no friso,
ima coroa de louros central, o envolver do brasão, do qual parte o
característico ornato de pequeno volume, em linha ondulada, com
enrolamentos de folhagens e quimeras; havendo ainda aqui, na parte
da saliência sobre as pilastras, duas pequeninas figuras, cujos
membros se transmutam em folhagens; nas pequenas quartelas do
simulado tramo de abóbada, botões florais e estrelas; e não
esquecendo os elementos geométricos clássicos.
Os medalhões das cantoneiras encerram dois bustos, um jovem e o
outro de guerreiro de meia idade; as cabeças em todo o volume, o
corpo esvanecendo-se em baixo relevo.
O S. Pedro da esquerda e o S. Paulo do lado oposto, de relevo
médio, ligam-se, como aqueles, às formulas coimbrãs. Voltados para
a entrada, o movimento que aparentam - interpretado pela linha da
coluna vertebral e membros inferiores, e dado com justeza - é
pequeno, tal qual sempre foi nas figuras de João Ruão. Os bustos de
homem e mulher dos pedestais encontram-se muito gastos, como as
composições dos pés direitos".
Sobre os extremos frisos, pináculos, e ao Centro um janelão no qual
duas pilastras lisas suportam um frontão triangular. Envolvido por
este conjunto temos o arco do janelão, de volta inteira e
chanfrado.
Olhando o portal do Entroncamento, vemos mudanças curiosas : os
bustos dos pedestais foram substituídos por escudos e armas. As
esculturas figurando S. Pedro e S. Paulo lá se encontram, mas a sua
expressão irritada contrasta nitidamente com a serena beatitude dos
da Atalaia, como que lembrando que já não nos encontramos nos
esplendorosos anos dos séc. XVI; do seu olhar congestionado
transpira inquietação e descontentamento; para mais os seus corpos
estão privados de movimento.
As figurinhas da parte do friso que se encontra saliente sobre as
pilastras foram substituidas por esferas armilares. O brasão do
centro do friso deu lugar ao escudo da Casa de Bragança, e no
ornato de pequeno volume foram introduzidas, a um e a outro lado do
brasão, a cruz da Ordem de Cristo e a cruz da Ordem de Avis,
qualquer delas intimamente relacionadas com a expansão
ultramarina.
Os pináculos e o janelão são, em tudo, idênticos aos da Atalaia. O
janelão tem uma legenda na arquitrave.
Nos pés direitos internos temos os anjos, os bucrânios e os
candelabros que na Atalaia estão demasiado corroídos. Pode-se
concluir, no entanto, que se trata de uma cópia livre. As estrelas
dos artesãos do tramo simulado da Atalaia deram lugar a botões
florais.
Repare-se ainda num pormenor curioso: os medalhões das cantoneiras
têm igualmente a cabeça de um jovem e de um guerreiro de meia
idade, só que, em vez de figuras anónimas, são figuras bem
conhecidas da história de Portugal : St.º António de Lisboa é o
jovem; D. Nuno Alvares Pereira é o guerreiro de meia idade. Como se
lê no folheto subscrito pela corporação fabriqueira do
Entroncamento, "o mais heróico dos nossos Santos a par do mais
santo dos nossos heróis".
Finalmente as portas da igreja, de espessura admirável, em que se
abrem por sua vez dois enormes postigos.
Ao nível do arranque do arco há uma legenda em pregaria de bronze.
Notáveis são as aldrabas maiores, aplicadas ás almofadas médias dos
postigos: seguram-se ferozes leões nas faces cerradas.
Grossas pranchas de mogno, firmadas por dezenas e dezenas de
pequenos florões de bronze, formam estas portas verdadeiramente
monumentais, que não têm rival na região.
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